ISBN: 978-65-86495-01-0
Título | Orestes, a Oréstia e democracia |
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Autor | Josué da Silva Bochi |
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Resumo Expandido | Em entrevistas sobre o seu intrincado documentário Orestes (2015), que trata das presenças da ditadura e mais especificamente da violência de Estado no Brasil contemporâneo, o diretor Rodrigo Siqueira expressa duas vontades suas que moldam o filme. Primeiro, lidar com o “vácuo histórico” vivido por sua geração, que frequentou a escola durante o período de redemocratização e não aprendia o que havia acontecido na história recente. Segundo, empreender no presente um esforço de fortalecimento dos valores e instituições democráticas. O filme foi maturado e realizado no contexto de formação da Comissão da Verdade e do projeto de de revogação da Lei da Anistia de 1979, que perdoou os crimes praticados pelo Estado durante a ditadura. O início da presente década foi também um período de acirramento, hoje escancarado, dos discursos políticos (como disse Siqueira, “há essa sensação do passo para trás, sendo que já está mais do que na hora de avançarmos”). Orestes não é, no entanto, nem uma aula de história nem uma obra estritamente militante, programática. O filme se faz através de um cruzamento em aberto de dispositivos diversos, como sessões de psicodrama e um júri simulado de um caso fictício. O caso é inspirado na história real de Ñasaindy – cujos pais, guerrilheiros, foram entregues para morrer pelo então namorado de sua mãe, o infame Cabo Anselmo – e por uma apropriação da trilogia Oréstia (de 458 a.C.), de Ésquilo. A tragédia esquiliana, conforme os letreiros iniciais do filme, encena “o primeiro júri popular de que se tem notícia” e “representa um marco civilizatório na cultural ocidental”. Contudo, o desenrolar do documentário se afasta de qualquer leitura teleológica da Oréstia ou da história recente do Brasil como uma jornada tortuosa da barbárie em direção à legalidade civil. O angustiante final nos deixa um convite, ou mais do que isso, uma intimação a pensar e tomar partido a respeito dos dilemas apresentados sobre justiça e democracia. Se a tragédia de Ésquilo ainda “pressupõe a fé numa ordem justa e grandiosa do mundo e sem esta ordem resulta inconcebível” (LESKY, 1996, p. 139), como sugerem alguns autores, Orestes encara um mundo em que o arcaico impulso de vingança não pode ser nunca destacado de todo do próprio movimento civilizatório. Não podemos deixar de nos ver incluídos; não há um campo exterior ao que Freud chamou de “o mal-estar da civilização”. Na suspensão do que seria uma teodicéia do Direito, o filme encontra a sua medida propriamente trágica. Para que se possa refletir de modo prudente sobre a necessidade da justiça, e daí pensar a nós mesmos enquanto sociedade, é preciso atravessar um abismo de sofrimento – como na história de Ñasaindy e também nas histórias mais recentes dos pais que tiveram os filhos assassinados pela Polícia Militar. Como nota uma das participantes do psicodrama: “você não consegue entrar tão profundamente na dor do outro”. É preciso passar da lição do sofrimento ao desejo, pois, como canta o coro na primeira parte da Oréstia, “só o desejo ensina”. O propósito da apresentação é chegar a Orestes através de sua relação ambivalente com Ésquilo, que aparece tanto como um “marco civilizatório” quanto como matéria trágica em que a fé democrática se suspende. Na revista eletrônica Cinética, o crítico Victor Guimarães (2016) sustenta, a meu ver com razão, que “de mote fundamental, a Oréstia se converte em obsessão que paira sobre o filme, mas não chega a incendiá-lo por dentro”. Mas não julgo acertado dizer, como afirma o crítico, que “a adesão ao texto é por demais imediata e pouco reflexiva”. Na recusa em traçar relações mais elaboradas em relação à Oréstia, o documentário possibilita associações mais frias e subterrâneas, que dizem respeito não apenas às obras, como também às condições históricas em que foram produzidas. Para dar a ver melhor tais associações, tecerei algumas relações, privilegiando aspectos formais, a respeito da lei arcaica, do tribunal, do coro e do herói trágico. |
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Bibliografia | ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. |