ISBN: 978-65-86495-01-0
Título | A alma no olho: o olhar para a câmera em Café com Canela e Temporada |
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Autor | Cleissa Regina de Oliveira Martins |
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Resumo Expandido | O presente trabalho busca discutir o olhar do personagem para a câmera em dois longas-metragens do cinema nacional, Café com Canela (2017) de Glenda Nicácio e Ary Rosa, e Temporada (2018), de André Novais de Oliveira. Gunning (1986) coloca que o ato de o ator olhar para a câmera era comum no cinema de atrações, mas é percebido como gerador de quebra da ilusão do cinema narrativo diretamente posterior. Acreditamos que a presença desse gesto em obras feitas por diferentes realizadores negros contemporâneos mostra uma questão que pode ser mais bem examinada a partir de seus significados estéticos e políticos. No cinema brasileiro, o curta-metragem Alma no Olho (1974), primeiro filme de Zózimo Bulbul – hoje considerado o pai do cinema negro nacional – como diretor, brinca com esse gesto, o que é percebido já em seu título. Na obra de 11 minutos Bulbul está em cena sozinho e olha para a câmera em vários momentos, inclusive no primeiro plano, que é um close em seus olhos. Atualmente o cinema negro brasileiro passa por um período fértil, com a emergência de novos nomes cujas obras chegam a circular em cinemas e, principalmente, em diversos festivais. Mais de trinta anos depois da estréia de Bulbul como cineasta é possível ver, na repetição do gesto de olhar para câmera, o legado não só político, mas também estético de sua obra. O filme Café com Canela (2017), de direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa foi um marco no cinema brasileiro recente por ter sido apenas o segundo longa-metragem de ficção dirigido por uma mulher negra a entrar no circuito comercial. O filme traz o encontro de duas mulheres negras, Violeta (Aline Brunne) e Margarida (Valdinéia Soriano), no recôncavo baiano e mostra a tentativa da primeira em ajudar a segunda a superar a dor do luto. Aqui, o olhar para câmera acontece num momento metalinguístico do filme. Enquanto limpam a casa, as duas falam sobre cinema e televisão e Violeta leva o olhar lentamente para a câmera até encarar diretamente o espectador. Temporada (2018) é o segundo longa do diretor mineiro André Novais Oliveira e conta a história de Juliana, vivida por Grace Passô, uma mulher que se muda para a periferia de Contagem após ser chamada num concurso público que prestou há dois anos. Diferente de Café com Canela, o olhar para câmera da protagonista em Temporada é mais sutil. Juliana está com Hélio, seu colega de trabalho, e é a primeira vez que os dois conversam sobre aspectos íntimos de suas vidas, como suas relações familiares e suas perspectivas para o futuro; o que pode mostrar uma maior cumplicidade não só entre os amigos, mas entre personagem e espectador. Acreditamos que ato de personagens negros olharem para a câmera aqui pode significar uma tomada de lugar no exercício de fazer cinema e uma subversão das representações até então pensadas para pessoas negras na frente, mas também atrás das câmeras, num papel ativo e num ato de não só falar com, mas de desafiar o espectador e o próprio cinema. Ao falar da resistência do espectador negro, Manthia Diawara diz que “um dos papeis do cinema negro independente (...) deve ser elevar a consciência do espectador sobre a impossibilidade de uma aceitação acrítica dos produtos de Hollywood” (Diawara, 1993, p. 219, tradução própria). Portanto, interessa saber em qual medida os dois filmes provocam o espectador negro a criar certa relação com o cinema proposto por seus diretores. Assim, podemos pensar em investigar (1) possíveis interpretações para o olhar para a câmera de personagens negros dentro da trama dos filmes e em seu contexto social e político e (2) a possibilidade de o olhar desses personagens transpor o espaço da tela e desafiar a espectatorialidade negra a se identificar com o cinema proposto por estes diretores. Faremos isso analisando os filmes supracitados e os percursos de seus realizadores, entendendo esse olhar como um gesto de resistência (hooks, 1993) e uma escolha estética que é também política. |
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Bibliografia | CARVALHO, Noel dos Santos. Cinema e representação racial: o cinema negro de Zózimo Bulbul. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. |