ISBN: 978-65-86495-02-7
Título | O ser como invenção – Das dramaturgias da memória às simulações de si |
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Autor | Márcio Henrique Melo de Andrade |
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Resumo Expandido | Toda narrativa de si compõe-se de reflexões que tecem o itinerário da experiência e alimentam uma tensão entre o singular e o universal. Lejeune (1989) estabelece as bases que a conceituam como um relato retrospectivo da existência em primeira pessoa do singular e a identidade nominal entre narrador, autor e personagem. Doubrovsky (1977) e Colonna (2004), por sua vez, compreendem a autoficção como uma forma literária em que o autor transfigura sua existência e identidade em uma história que investe em concepções mais alargadas de realidade, imaginação e verossimilhança. No cinema, as escritas de si surgem com mais veemência no documentário com a relação entre três elementos: a emergência do autobiográfico no cinema experimental, a rejeição ao cinema direto e o advento das questões da reflexividade (LANE, 2002). Entre diários, documentos e arquivos, vários diretores ensaiam um olhar de dentro de si para elaborar a própria imagem, assumindo as formas de autorretratos, filmes-carta, ensaios, filmes-diário e narrativas sociais e políticas. Contudo, ao longo dos tempos, essas escritas vêm se espraiando com mais evidência no cinema ficcional, em obras de cineastas como François Truffaut, Nanni Moretti, Alejandro Jodorowsky e Xavier Dolan. Enquanto isso, os curtas-metragens vêm se tornando um terreno ainda mais fértil para narrativas autobiográficas/autoficcionais, como em Virgindade (2015, Chico Lacerda), Guaxuma (2018, Nara Normande) e cinema contemporâneo (2019, Felipe André Silva). Nesse artigo, pretende-se combinar definições da narrativa autobiográfica a aspectos criativos em torno do roteiro cinematográfico, como as potências e limitações do processo criativo (MARAS, 2009), as instâncias de autoria (SAYAD, 2008) e a possibilidade de construção do poético (JOHANN, 2015). Maras (2009), por exemplo, entende o roteiro como uma prática que se baseia em processos, técnicas e dispositivos que podem culminar em possibilidades ‘não-normativas’ de escrita – com o som, o movimento, os corpos. Em Virgindade, o diretor parte de imagens de fachadas de cinemas pornográficos e arquivos pessoais para contar descobertas sexuais da infância e adolescência. Nesse movimento entre capturar as vivências pessoais e friccioná-las às imagens, o filme abraça espectros mais coletivos – uma das recorrências do personal documentary desde os anos 60. Para Johann (2015), por sua vez, um dos elementos do ofício do roteirista consiste em “subverter os elementos que nos são dados pelos seus usos; que possamos ter a capacidade de habitar o vazio com propriedade, preenchendo-o com a imaginação” (p. 91). Em Guaxuma, a dramaturgia das memórias da diretora na sua infância na praia que dá título ao filme tangencia a linguagem documental e a animação, criando fissuras entre as noções de ‘artifício’ na animação e da ‘realidade’ dos arquivos. Nele, diversas materialidades se combinam – fotografias da infância, animações feitas em areia e origamis de papel – para investir em formas poéticas de elaborar a própria existência. Sayad (2008), por sua vez, pensa na autoria entre um olhar formalista e estruturalista em torno do fazer e um sentido simbólico que “indica a presença de um ser pensante que se expressa por meio do filme – o que, por sua vez, atribui ao trabalho um valor artístico” (p. 28). Em cinema contemporâneo, o diretor tensiona a relação entre ser e imagem ao abordar uma história de abuso sexual ao mesmo tempo em que reflete sobre a própria abordagem do si no cinema. Nesse atrito, o cineasta parte de uma única foto para extrapolar o conteúdo dessa imagem, conectando traumas pessoais e reflexões estéticas sobre sua própria representação. Ao analisar esses filmes em um espectro que combina as escritas de si aos processos, poéticas e autorias na escrita cinematográfica, parte-se da hipótese de que essas obras cristalizam um desejo de imaginar a própria interioridade. Ou seja, ao nos narrar, não representamos ‘objetivamente’ uma imagem de um si, mas o simulamos. |
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Bibliografia | COLONNA, Vincent. Autofiction & autres mythomanies littéraires. Paris: Éditions Tristram, 2004 |