ISBN: 978-65-86495-02-7
Título | A performance aleatória nos cinemas experimentais |
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Autor | Sandro de Oliveira |
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Resumo Expandido | Este trabalho pesquisa obras de um “outro cinema” (de poesia, marginal, vanguarda, underground), cinema do não-ator, do corpo societal, seres anônimos destituídos de papel, seres meramente icônicos que estão lá para servir à trama, ou, pior ainda, nem isso mais, relegados que estão à invisibilização pelo dispositivo. Quem é aquela senhora que desce as escadas de uma favela e interage de forma sublime com Helena Ignez em Copacabana, mon amour (Rogério Sganzerla, 1970)? Ela merece ter vida ou, melhor, ela tem vida digna de ser exibida no filme? Esses filmes dos quais este trabalho se ocupa tentam, em modos díspares e em graus híbridos, promover contraste ao justaporem, na mesma cena, um “ator” nos trâmites de uma diegese, e um corpo societal, que muitas vezes não dá qualquer atenção, ou talvez nem nota, a produção cinematográfica em andamento. É esse embate, por vezes cheio de afeto e compreensão, por vezes até hostil, que este trabalho versa. Em determinada cena de The flower thief (Ron Rice, 1960), o ator Taylor Mead, vagando a esmo pelas ruas de San Francisco, se detém numa esquina qualquer e começa a emular os gestos do guarda de trânsito, histrionicamente elevando os braços, girando-os no ar, como se fosse maestro de uma sinfonia urbana. Este momento, periférico até em meio à homenagem explícita que o filme faz à geração Beat, nos fornece um tipo de acontecimento que filmes experimentais tentaram exibir, tanto pelo inusitado quanto pela forma do encontro: um ator, dentro de uma (possível ou frágil) diegese se desloca até suas bordas, e interage com um elemento humano que não faz parte dela, um elemento que os cinemas clássicos, modernos ou narrativo-representativos tentaram invisibilizar: anônimos que Naremore (1988) chama de “performance alatória”. Quando vemos os elementos humanos que este trabalho analisa (ator e corpos societais) justapostos na mesma cena, temos na mesma imagem seres interagindo em níveis de grandeza opostos: o que trabalha para estabelecer a ilusão de um personagem nos trâmites da narração (o ator) e outro que se oferece no mesmo grau de performance, mesmo nível de grandeza que nós, espectadores (o corpo societal). Um está inserido no mundo que não nos diz respeito (a diegese) o outro corrobora a mesma realidade de referência que nós (o mundo real). Ambos estabelecem graus distintos de relação com o que Erving Goffman (1986) chama de moldura (frame): o ator está de um lado desta fronteira, atuando, e o corpo societal do outro lado deste muro invisível, destituído que está de qualquer contrato com o pacto diegético. Um está ciente da diegese que serve como ator, exibindo o personagem em determinado grau de teatralidade que pode, ou não, ser percebida pelo sujeito anônimo que é interpelado ou que interpela o ator. O corpo societal não estabelece como a diegese qualquer relação contratual, nem artística e nem ético-estética, como os rapazes que conversam despercebidamente com Joe Dalessandro em Flesh (Paul Morrissey, 1968). A diegese nesses filmes se mostra não um mundo protegido dos acasos do real, mas uma fonte de energia centrípeta, em que os atores por vezes gravitam ou servem como ímãs aos seres anônimos que cruzam seus caminhos. Por vezes, a composição da cena se torna ambiente ambíguo onde coabitam atores e corpos societais, misturados até com membros da equipe de filmagem, dando um ar de no man’s land ao que vemos na tela. Foi isso que aconteceu em Precauções diante de uma puta santa (Rainer W. Fassbinder, 1971). Por fim, faz-se necessário estudo dos elementos que compõem a tessitura cênica desses filmes, sua diegese tênue e porosa, seus elementos humanos interagindo de modos híbridos e desconcertantes, pois não há distinção entre cotidiano privado do ator e sua atividade pública (persona), entre os atores e os transeuntes, dissolvendo todas as fronteiras possíveis, da identidade e da caracterização da função dos elementos humanos que servem ao filme. |
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Bibliografia | AMIEL, V. et. al. Dictinnaire critique de l’acteur. Rennes: Presses Univ. de Rennes, 2012. |