ISBN: 978-65-86495-02-7
Título | Uma cena sem paredes: refletindo Todorov e o fantástico no cinema |
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Autor | Fabio Cardoso Andrade |
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Resumo Expandido | Em Introdução à Literatura Fantástica, o filósofo e linguista búlgaro Tzvetan Todorov define como “fantástico” um momento de vacilação em relação ao registro de um determinado acontecimento narrativo. Em um mundo diegético regido por fenômenos naturais, certas experiências parecem esticar a percepção do universo narrado, desafiando os limites da natureza. Segundo Todorov, se o evento aparentemente excepcional se confirmar como estranheza ilusória diante de um fenômeno natural, a narrativa se assenta no terreno do “estranho;” se o sobrenatural se impor como parte integrante do universo diegético, estaria então no terreno do “maravilhoso” - os dois vizinhos do fantástico. “O fantástico ocupa o tempo dessa incerteza (…) experimentada por um ser que não conhece mais as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural.” (TODOROV, 1980, p. 15). A conceituação apresentada em Introdução à Literatura Fantástica teve efeito tamanho no pensamento sobre cinema que o fantástico se tornou um nicho de produção, do qual festivais brasileiros como Fantaspoa e o finado Riofan são apenas dois entre numerosos exemplos. No entanto, a aplicação nos estudos de cinema das categorias criadas por Todorov para a literatura tende a circunscrevê-las aos limites do universo narrativo, concentrando-se na incerteza experimentada pelas personagens. Este trabalho sugere uma outra possibilidade de manifestação do fantástico no cinema: a vacilação produtiva do espectador em relação à natureza do próprio registro fílmico. Em obras como o primeiro episódio do seriado Servant (2019), dirigido por M. Night Shyamalan, e a reconstituição/reinterpretação de O Tango do Viúvo e o Espelho Deformador (Tango del Viudo y su Espejo Deformante, 1967-2020), filme inacabado de Raoul Ruiz concluído pela cineasta Valeria Sarmiento, também viúva do falecido diretor chileno, novas possibilidades de efetivação do fantástico no cinema se manifestam justamente ao produzir nos espectadores uma vacilação diante do estatuto daquilo que assistem. Em ambos os casos, o efeito reflexivo é semelhante ao fantástico diegético, e distinto de modalidades vizinhas igualmente vacilantes, como o cinema como “jogo mental” e “experimento de pensamento” (ELSAESSER, 2021), esticando a dúvida além dos limites da tela. Na obra de Shyamalan, a quebra sistemática da quarta parede, o uso ostensivo de desenquadramentos, e a incerteza latente quanto aos papéis desempenhados por cada personagem se tornam ferramentas de produção desse fantástico reflexivo: estamos, de fato, diante de uma obra de horror? Esse efeito traduz o sentimento de uma trama que tematiza uma defasagem entre o real e o artificial, tendo como personagem central um boneco que substitui um bebê de carne e osso, mas cujos índices de humanidade e inumanidade variam, assim como a adesão do registro às convenções do gênero. Já no filme de Sarmiento e Ruiz, é o empilhamento de diferentes tempos, técnicas, e tecnologias que conjura um aspecto fantasmático inerente às obras inacabadas: um filme produzido em 1967, mas que não existe como originalmente concebido, e que acessamos somente por entre as frentes dessa recriação. Ao aprofundar as cicatrizes do processo, Sarmiento dá dimensão reflexiva à “conversa com os mortos” que o filme tematiza e encarna, transformando O Tango do Viúvo também em um tango da viúva, espelho deformado de si próprio. Mais do que tomá-los como objetos ideais, esse trabalho busca na contemporaneidade dois exemplos que reabrem a relação da obra de Todorov com o cinema, sem aprisioná-la aos limites de sua origem literária. Com isso, busca-se expandir retroativamente o lugar do fantástico na produção audiovisual - de The Big Swallow (1901) ao renascimento dos truques de Méliès em plataformas de vídeo como TikTok, Musically, e Snapchat - quando observado à luz da fragilidade diegética sugerida pelos cinemas modernos. |
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Bibliografia | BENSON-ALLOTT, Caetlin. Killer Tapes and Shattered Screens: Video Spectatorship From VHS to File Sharing. Berkeley: University of California Press. 2013. |