ISBN: 978-65-86495-02-7
Título | A geo-história na trilogia de Patricio Guzmán |
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Autor | Patricia Cunegundes Guimaraes |
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Coautor | Andrea França Martins |
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Resumo Expandido | Este artigo pretende discutir a última trilogia do documentarista chileno Patricio Guzmán, Nostalgia da luz (2010), O botão de pérola (2015) e A cordilheira dos sonhos (2019), em que ele elabora a tessitura poética entre lugares e memória, ao associar a singular geografia do Chile à história do país, desenvolvendo questões colocadas no ensaio de Andréa França e Tatiana Siciliano Quando o cosmos é carne: montagem por correspondência de Guzmán (2018), além de incorporar o conceito de solo como casa da história, colocado por Georges Didi-Huberman no livro Cascas (2017). O que nos interessa, na última trilogia de Guzmán, são as ressonâncias entre a paisagem geográfica do Chile e o tempo condensado em memória; como a escrita pessoal tecida pelo cineasta encontra afinidades e aderências na geografia local – na cordilheira, no mar, no deserto; e pensar como o cineasta constrói e fabula o pertencimento à terra, ao lugar, à comunidade e ao espaço a partir da posição de exilado. O que a trilogia mostra é uma invenção retrospectiva, um território residual, algo que foi perdido ao “afundar” nos anos de ditadura. Como repolitizar o pertencimento ao lugar, ao solo, da perspectiva do exílio? Da escala cósmica e da imensidão dos 105 mil km² de área do deserto do Atacama às mulheres de Calama buscando restos de corpos, do cálcio das estrelas ao cálcio dos restos mortais dos desaparecidos políticos que os militares ocultaram duas vezes no deserto “todas as coisas mantêm um diálogo com todas as coisas”, dirá o poeta chileno Raúl Zurita em O botão de pérola. Em Nostalgia da luz, a imagem das mulheres cavando o imenso deserto com suas pequenas pás de jardim, num contraponto de dimensões – a dos corpos esparsos na vastidão do deserto –, nos remete à luta desigual pelo direito à verdade, pelo direito à Justiça, pelo direito a enterrar seus mortos. Mas, assim como em Auschwitz-Bierkenau, a terra de Atacama também “vomita” restos de talheres, pratos, tigelas, cacos de copos ou garrafas, sapatos, e até pedaços de crânio (DIDI-HUBERMAN, 2017, p.66). Em O botão de pérola, o que permaneceu ao longo das camadas sobrepostas de tempo foi um botão que deixou rastros tanto para os nativos, como para a identificação dos mortos pela ditadura lançados ao mar (FRANÇA; SICILIANO, 2018). O mar surge como locus e modus operandi para o ocultamento da vida. Mas, assim como o deserto, o oceano e seus mistérios também guardam diversas temporalidades, e o botão conecta as águas com o início da República: um botão de pérola foi a moeda com a qual o marinheiro inglês Fitz Roy, capitão do navio Beagle, que levava Charles Darwin, pagou aos pais de um adolescente da etnia Yamana para levá-lo à Grã-Bretanha em 1830. A cordilheira dos sonhos reitera a proposta da trilogia de falar do Chile a partir da geografia; neste filme, são as cordilheiras que conservam memórias pessoais e a memória histórica. Guzmán transita por Santiago, “onde os interesses econômicos se cruzam com os históricos, os estéticos, os comunicacionais” (CANCLINI, 1990, p.280), expõe as contradições de seu país e confronta sua condição de exilado com quem decidiu permanecer no Chile, o fotógrafo e documentarista Pablo Salas. Transformar a acidentada geografia chilena, a memória e o cosmos em uma potência libertadora é também fazer desses elementos um problema do futuro e não apenas do passado, lembram França e Siciliano (2018). Os três filmes de Guzmán, nesta perspectiva, se colocam igualmente diante da desconfortável e longa interrogação histórica a respeito da vida do Homem e do universo, da vida e da matéria (FRANÇA; SICILIANO, 2018, p. 94). Ao observar o cosmos e escavar o deserto, ao mergulhar no oceano e mirar pelas frestas da cordilheira, Guzmán faz emergir não só sobrevivências e temporalidades diversas como restitui à enunciação terrível do desaparecimento a fala cosmológica de modos de existência outros. |
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Bibliografia | CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas. Estrategias para entrar y salir de la modernidad. Editorial Grijalbo: Ciudad de Mexico, 1990. |