ISBN: 978-65-86495-02-7
Título | John Akomfrah, artista como arquivista |
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Autor | Rodrigo Sombra |
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Resumo Expandido | A arte do inglês John Akomfrah se define, antes de qualquer coisa, por um impulso de apropriação. Selecionar e justapor fragmentos de criações alheias (imagens, textos, sons) são as operações de base em seus filmes, cujos itinerários percorrem uma intricada cartografia da diáspora na modernidade. A vontade de apropriação em Akomfrah remete, em mais de um sentido, à figura do arquivo. Num plano elementar, tal relação diz respeito às instituições responsáveis por guardar filmes, cinejornais e fotografias consultados pelo realizador. Noutra instância, o arquivo excede o estatuto de mero espaço físico onde são armazenados os documentos históricos, constituindo antes uma prática social difusa e multiforme. Na formulação de Foucault, esta segunda acepção de arquivo descreve um dispositivo apto a tornar visíveis certos enunciados, atuando como um sistema regulador cujas operações estabelecem as condições do visível e do dizível – e, logicamente, também aquelas operações de apagamento, tudo aquilo que invisibiliza e torna indizível esta ou aquela experiência em determinada época e lugar. Somada a essas duas dimensões, esta apresentação quer pensar o lugar arquivo em Akomfrah também como uma poética. É neste sentido que Catherine Russell esboça uma linguagem arquiveológica e Hal Foster anuncia a figura do “artista como arquivista”. Atraídos por objetos espalhados pelo mundo, os artistas discutidos por esses autores sentem-se movidos não só a acumulá-los dispondo-os numa coleção pessoal, mas a instituir a própria obra como destinatária, morada final dos materiais encontrados. Os fragmentos coletados são assim incorporados à materialidade mesma da obra segundo padrões de acumulação e ordenamento próprios. De maneira similar, penso que os filmes de Akomfrah conformam, mediante uma dinâmica de pesquisa, consignação e ordenamento, uma espécie de obra-arquivo. Esta apresentação se concentra no documentário As Canções de Handsworth (1986). Filme de estreia de Akomfrah, ele ilumina os levantes raciais então em curso nas cidades britânicas, onde imigrantes caribenhos, indianos e paquistaneses rebelavam-se contra os abusos policiais e a precariedade econômica da Inglaterra thatcherista. Se a sua câmera registra a quente os protestos, Akomfrah observa-os também à luz das vidas de caribenhos emigrados à Grã-Bretanha no pós-guerra, experiência reavivada pelo reemprego de fragmentos de antigos cinejornais e documentários ingleses. O filme se estrutura assim entre duas temporalidades, em súbitas montagens de passado e presente. No entanto, se busca as subcorrentes históricas dos levantes, As Canções não o faz no sentido de restituir uma causalidade de tipo sociológica apta a tornar transparente a trama complexa da diáspora no Reino Unido. Há, no recuo ao arquivo, a aposta nos contornos de uma paisagem afetiva, a busca por contemplar desde dados cotidianos às mais recônditas aspirações dos imigrantes, aspectos ignorados pela história contada nos documentários do pós-guerra. Essa dimensão afetiva se faz sentir no modo pelo qual Akomfrah não reduz as imagens de arquivo a uma função ilustrativa. Várias dos planos reutilizados são acompanhados por textos escritos por ele ou flutuam sem uma moldura contextual bem definida, reinseridos antes nas tipologias visuais (cenas de desembarques no porto; o trabalho na fábrica; a vida nos espaços públicos) orquestradas pelo artista. É como se Akomfrah evocasse, entre as demandas por respostas no presente e as lacunas do arquivo, “um estado de ambivalência e estratégica irresolução” (MERCER, 2015:5). Argumento que o enlace entre diáspora e história em Akomfrah está impregnado de uma vocação construtiva cara a pensadores antilhanos como Wilson Harris e Glissant. Por fim, interessam-me os procedimentos do cinema direto usados pelo realizador para evidenciar no ato os protocolos racializados da técnica audiovisual, revelando, numa segunda instância, como o arquivo não só guarda, mas também produz o conteúdo arquivado |
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Bibliografia | DERRIDA, J. Mal de arquivo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. |