ISBN: 978-65-86495-02-7
Título | O relato de um operário contemporâneo em "Arábia" |
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Autor | MAURICIO VASSALI |
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Resumo Expandido | Das diversas camadas possíveis de análise no longa-metragem "Arábia" (2017, Affonso Uchoa, João Dumans), este trabalho coloca foco sobre o narrador. Pela presença de um trabalhador como escritor e voz da narrativa, não se sugere aqui o recurso do narrador-personagem como algo inaugural, mas talvez uma atualização da representação do operário na cinematografia brasileira. O filme, assim, acena para uma expressão de subjetividade de sua figura central que vai para além de sua posição no sistema produtivo. É o que também mostra Ranciére (1988) ao reunir textos escritos por operários no século XIX que subvertem a lógica do sono dos cansados em prol da escrita noturna. As palavras de tais trabalhadores manifestam “o pensamento dos que não estão destinados a pensar” (idem, p. 13) e a partir delas talvez seja possível reconhecer a complexidade nas “relações entre a ordem do mundo e os desejos dos que estão submetidos a ela”. Ao escrever em um caderno suas memórias, Cristiano, o protagonista do filme, concebe pelas suas experiências cotidianas um testemunho que provoca a elaboração de um pensamento. Relatando acontecimentos aparentemente ordinários em sua jornada, que incluem acidentes, relações de afeto e a busca por trabalho, ele coloca em revisão suas experiências. A narrativa do dia vulgar, em Foucault (1992, p. 156), é uma forma de examinar a própria consciência. É como se, ao observar a banalidade cotidiana e suas ações, Cristiano inspecionasse a si próprio pelo ato de relatar. Este relato atesta não a importância dos acontecimentos propriamente descritos, mas sim certa qualidade de um modo de ser. Nas palavras de Benjamin (1985, p. 205), a narrativa é uma forma artesanal de comunicação justamente porque prospera no meio artesão. Ela interessa não tanto pelo seu conteúdo propriamente, mas pela marca que o narrador inscreve nela. Assumindo a voz de Cristiano, o longa investe na força da palavra e usa a narração como uma escolha que opera em favor de uma certa verossimilhança, dado que é também através da voz autodiegética que o protagonista expressa suas experiências. Tal efeito ganha ainda mais força ao se considerar o fato de que todas as memórias relatadas pela voz foram anteriormente escritas. A concepção da memória sempre teve a escrita, em seus mais variados usos, como símbolo fundador. De acordo com Gagnebin (2006, p.111), talvez isso se dê pelo fato de a escrita “ser mais arbitrária que a imagem”, e por mais facilmente escapar “da problemática da aparência e da realidade”, o que seria fatal na aferição de um “grau de fidelidade ao real de uma lembrança”. Ainda na reflexão da autora, pelo poder que a escrita tem de traduzir a linguagem oral, ela cria relações com “o fluxo narrativo que constitui nossas histórias, nossas memórias, nossa tradição e nossa identidade”. É mesmo através da escrita que o protagonista entra em um processo de rememoração, e cria um fluxo direto com a memória a partir de seu relato. A memória aqui assume a perspectiva bergsoniana que não se resume a uma mera regressão do presente ao passado. O movimento de atualização da lembrança produz ação, e o que era lembrança torna-se novamente percepção no presente. “Arábia” se coloca nesse atravessamento não tão somente porque narra seu passado a um leitor no presente e, consequentemente, ao espectador que o escuta, mas principalmente pelo fato de ressignificar vivências através da escrita, num processo memorialístico. O antes, talvez desprovido da consciência do agora, ganha nova tradução. E esse processo é perceptível em diversas passagens do filme. Na coexistência de presenças e ausências, o antes e o agora, o consciente e o inconsciente, o filme constrói seu narrador. Narrador este que ganha a empatia do espectador pelas trocas individuais possíveis a partir da experiência contada. |
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Bibliografia | Benjamin, W. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. |