ISBN: 978-65-86495-02-7
Título | Sobre lugares morais, fronteiras e afetos |
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Autor | Janie Kiszewski Pacheco |
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Resumo Expandido | Os filmes Casa Grande (2015), de Fellipe Gamarano Barbosa, e Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert assemelham-se em registrar, com distintas nuances, colisões e aproximações na convivência entre classes sociais marcadamente díspares: classe média alta e classe trabalhadora. Tal convivência tem como pano de fundo as mudanças efetivadas no país há pelo menos duas décadas mediante iniciativas governamentais e políticas públicas que propiciaram inclusão de inúmeros brasileiros como consumidores, o acesso ao ensino superior (financiamento estudantil e cotas) e, acima de tudo, a ampliação dos horizontes frente à vida de segmentos sociais outrora fortemente marginalizados. Neste sentido, meu propósito é analisar, de forma comparativa, cenas desses dois filmes que manifestem ou sugiram, por um lado, a hierarquia e suas fronteiras e, por outro, a igualdade e seus impasses, existentes entre os personagens. Assim em Casa Grande, o jovem Jean tem a oportunidade de conhecer um “outro mundo” com o descenso financeiro da família. Sua rotina será fortemente afetada, o que inclui, por um lado, o afastamento de certos empregados da casa com os quais mantinha vínculos mais estreitos (Severino, motorista, e Rita, doméstica), e, por outro, a iniciação amorosa com Luíza, aluna de escola pública, que conhece numa viagem de ônibus. Já em Que horas ela volta? a ordem na casa dos patrões é abalada com a chegada de Jéssica, filha de Val, empregada da casa, para prestar vestibular na USP. Mãe e filha não se veem há muitos anos, são como duas estranhas, por outro lado, Val e Fabinho, filho dos empregadores, compartilham de um afeto genuíno há muito tempo. O comportamento curioso e questionador de Jéssica deixará todos aparvalhados, sobretudo, sua própria mãe. Os espaços privado e público nos quais os personagens desses dois filmes circulam podem ser tomados como “casa” e “rua”, na acepção consagrada por DaMatta (1985). No contraste entre “casa” e “rua” não há somente uma separação física, há os comportamentos esperados dos sujeitos que por eles transitam, há os valores que são por eles incorporados em vista das rotinas efetivadas, bem como as expectativas depositadas nas interações mantidas com os demais sujeitos. Assim, “casa” e “rua” são, acima de tudo, “lugares morais” e mantêm uma relação de complementaridade. Na “casa” as relações que ali se fazem presentes estão marcadas por dimensões sociais relevantes como a divisão por sexo e idade e por certas hierarquias, pais e filhos, por exemplo, não estão no mesmo patamar. Se agregarmos a presença de serviçais na “casa” determinadas fronteiras e atitudes esperadas far-se-ão presentes a fim de garantir a manutenção da hierarquia social, pois as mesmas serão as balizas que assinalam material e simbolicamente o espaço dos patrões e o dos empregados. Por outro lado, ainda que a manutenção da hierarquia social se verifique nesse contexto, podem ser encontradas brechas nas quais essas fronteiras, ainda que não sejam plenamente transpostas, fiquem no mínimo borradas. Tal transgressão sugere que a presença de elementos fundantes da vida social como a empatia, a gratidão e o afeto (Coelho, 2006) se efetiva mesmo em situações de diferença social muito acentuada. Se a “casa” se ampara na hierarquia entre seus membros, a “rua” contrabalança com outro valor social igualmente importante: a igualdade. Na “rua” os sujeitos se tornam indivíduos, se veem como iguais uns aos outros e são livres para realizar escolhas para sua vida. Tomamos aqui a “rua” como o espaço público no qual essas premissas têm efeito universalizante e estão legalmente amparadas. |
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Bibliografia | Coelho, Maria Cláudia. O valor das intenções – dádiva, emoção e identidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. |