ISBN: 978-65-86495-02-7
Título | "Fiel e verdadeira"? Adaptação literária num filme de Margarida Gil |
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Autor | Ana Isabel Soares |
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Resumo Expandido | A primeira ficção de Margarida Gil realizada para o cinema foi produzida por ela mesma e por João César Monteiro, com quem a realizadora já trabalhara em projetos anteriores. Teve como título RELAÇÃO FIEL E VERDADEIRA (1987). O argumento do filme (tarefa partilhada também entre César Monteiro e Margarida Gil) adapta a autobiografia seiscentista que a religiosa Antónia Margarida Castelo Branco redigiu depois de abandonar uma vida secular de maus tratos conjugais, e de se tornar Soror Clara do Santíssimo Sacramento. Gil trabalhou com a escritora portuguesa Luiza Neto Jorge o texto do “fiel e verdadeiro” relato da vida de Antónia Margarida antes da passagem à sua existência monástica: os oito anos durante os quais esteve casada com o aristocrata falido Brás Teles de Meneses e Faro. A narradora conta de que modo, nesse período, sofreu todo o tipo de violência por parte do marido. Foram todos esses abusos que a levariam a recolher-se no mosteiro de Santos e a entrar para o noviciado, no Convento da Madre de Deus de Xabregas, em março de 1679. Foi cerca de trezentos anos depois, por volta de 1983, quando se preparava a edição em livro do manuscrito do século XVII, que surgiu no Jornal de Letras, na altura um semanário literário editado em Portugal, uma referência do editor João Palma-Ferreira (ao tempo, diretor da Biblioteca Nacional de Portugal) à obra Fiel e Verdadeira Relação que dá dos sucessos de sua vida a criatura mais ingrata a seu Criador por obediência de seus Padres espirituais. Foi assim que Margarida Gil tomou contacto com a história da religiosa e, impressionada, decidiu filmá-la e relatar a difícil convivência com o algoz que a autora tivera por marido. O propósito do relato original, claramente expresso no título, integrava-se num hábito da época: sublinhar a veracidade do que se escrevia, repetindo o seu carácter “fiel” da narração aos acontecimentos relatados. Quando Margarida Gil decide alterar o título e deslocar o substantivo para antes dos dois qualificativos no nome que deu à adaptação fílmica, não está apenas a criar uma sintaxe mais próxima do tempo da sua própria atualidade – está a colocar o peso interpretativo mais sobre o substantivo relação do que sobre o carácter verídico do relato; este, por assim dizer, estará, à partida, assegurado pelo manuscrito que se adapta. Mas o que a realizadora também consegue com esse gesto aparentemente mínimo de deslocação é evidenciar uma duplicidade semântica inexistente no texto original: não é apenas o relato (a “relação que dá [...] a criatura,” no original, tem esse sentido inequívoco), sinónimo direto de relação, que é fiel e verdadeiro (fidelidade e veracidade que, numa leitura irónica, denotam o anacronismo em que tantas mulheres ainda vivem no século XX). Também a relação entre as duas personagens principais, por mais crua que se mostre, deveria ser tomada como verdadeira e fiel: aquilo que quer o discurso da monja, quer o filme de Margarida Gil, denunciam que não é. Na escolha do título do filme, pode entrever-se, portanto, o olhar crítico da realizadora, acrescentado de um amargo filtro irónico. |
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Bibliografia | Dias, V. S., “Imagens de Mulheres em Margarida Gil e Teresa Villaverde” in Mendes, João Maria (org.), Novas & Velhas Tendências no Cinema Português Contemporâneo, CIAC – Centro de Investigação em Artes e Comunicação, 2010: 343-348 |