ISBN: 978-65-86495-02-7
Título | Da colonização do sono aos sonhos do corpo: “A febre”, de Maya Da-Rin |
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Autor | Ilana Feldman |
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Coautor | Maria Cristina Franco Ferraz |
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Coautor | Ericson Telles Saint Clair |
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Resumo Expandido | Na passagem do século XIX ao XX, coincidindo com a emergência do cinema, os limiares entre sono e vigília foram objeto de especulação e problematização. Os processos de rotinização e automatização da vida, vinculados ao desenvolvimento do capitalismo de base industrial e ao que Jonathan Crary chamou de “industrialização dos regimes de contemplação” suscitaram reflexões, como as de Gabriel Tarde, que descreveu a vida social como um estado sonambúlico. A confluência entre estado social e estado hipnótico também se manifestara em pinturas da época, como em obras de Georges Seurat e em diversos quadros de Edvard Munch, nos quais corpos desprovidos de força ocular e vital assombram as cenas. Como contraponto a essa indiscernibilidade entre sono e vigília, os sonhos parecem abrigar formas de resistência que o cinema tanto tematizou quanto realizou. Já na virada do século XX ao XXI, conforme as perspectivas apresentadas por Crary em “24/7 – capitalismo tardio e os fins do sono”, as fronteiras do sono passam a ser objeto de pesquisa e disputa com vistas à colonização desse estado do corpo, por ora incontornável, de escape e liberdade. Que os sonhos – como a imaginação – tenham tal potência política já foi ressaltado tanto por Hannah Arendt quanto por Philip K. Dick, que, na conferência “Homens, androides e máquinas”, afirmou: “São os nossos sonhos que nos transformam de máquinas em seres inteiramente humanos”. Inevitável lembrar as cenas finais de Blade Runner, que se apoia no livro de Philip Dick: “Androides sonham com ovelhas elétricas?”, base de uma das cenas mais icônicas do filme de 1982. Tal aliança entre o cinema e a potência política dos sonhos será o ponto de partida para a discussão acerca de “A febre” (2019), primeiro filme de ficção de Maya Da-Rin, cujo protagonista, Justino, é de origem indígena. Viúvo, ele vive na periferia de Manaus com a filha enfermeira e trabalha como vigilante no porto de cargas da cidade à beira no Rio Negro, onde assiste diariamente à chegada de imensos containers carregados de peças de reposição e mercadorias vindas da China, em um regime de trabalho fastidioso, solitário e sonambúlico. Não demora, a vigília necessária começa a dar lugar a uma estranha febre e ao sono no local de trabalho, que é logo interpretado pela empresa como distração e insubmissão – tal como o índio “preguiçoso” do início dos tempos coloniais. Mas, o semblante pacífico e a presença silenciosa expressa pela solidez do corpo de Justino logo revelam uma insidiosa e discreta resistência: fora dali, com o corpo febril, Justino sonha. De sonâmbulo do mundo do trabalho durante o dia, Justino passa a se reconectar com seu corpo e suas origens durante a noite. Desconfia da medicina, que quer tratar sua febre, enquanto seus sonhos, produções tão particulares como coletivas, o ancoram novamente em sua comunidade. Para Justino, assim como para o pensador indígena Ailton Krenak, os sonhos não se reduzem à experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas abarcam um “exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as escolhas do dia a dia”, isto é, uma disciplina de autoconhecimento e prática ética na interação com o mundo e com a natureza. Como vemos em “A febre”, por meio de sua delicadeza calourenta e úmida, de sua serenidade diuturna imersa em gestos cotidianos, a figura do sonho – uma forma de imaginação política – torna-se disparadora de um novo regime de sensibilidade, de novas modalidades de afeto, orientando as ações de Justino e operando uma transformação na própria realidade. Testemunhos da impropriedade de dicotomias caras ao paradigma etnocêntrico, como civilização e barbárie, natureza e cultura, corpo e espírito, pares então indissociáveis para a cosmologia perspectivista que “A febre” se propõe a encenar, os sonhos de Justino resguardam a mesma opacidade de que o filme é constituído. Nessa reversão de pontos de vista, os “outros” – selvagens, predadores, incapazes de sonhar o futuro – somos nós. |
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Bibliografia | CASTRO, Eduardo Viveiros de. “Perspectivismo”. In: Metafísicas canibais. São Paulo: Ubu, 2018. |