ISBN: 978-65-86495-05-8
Título | A cosmologia guarani-kaiowá e O coração da terra (Gomes e Gomes, 2020) |
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Autor | Carlos Eduardo da Silva Ribeiro |
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Resumo Expandido | Yvy Pyte - Coração da terra (Genito Gomes e Johnn Nara, 2020) é um curta-metragem realizado por jovens guarani com apoio do programa de extensão “Imagem, canto e palavra nos territórios Guarani e Kaiowá” (PPGCOM UFMG), no tekoha Guaiviry (MS), contexto de retomada. O filme homenageia o rezador Valdomiro Flores, falecido em 2017, cuja voz em off conta como e onde surgiu o mundo: no Rio Paraguai, entre o Paraguai e o Mato Grosso do Sul. As duas margens do rio são a “terra dos dois pilares do mundo”. É justamente onde transitam os guarani kaiowá como “crianças que engatinham” sem se afastar do berço. É por serem do coração da terra e por estarem sempre aí que são “Ava puro de verdade”. Ava é “gente”. O inhambu, como Valdomiro ressalta, também vive no coração da terra, o que situa esse pássaro, e por extensão todos os seres contíguos à região, em uma comunidade originária em aliança com o próprio mundo. Ser ava puro é também paralelo ao apego à “palavra verdadeira”, repetida diariamente nos cantos como o festivo kotyhu, que se canta “para a roça crescer bem”. Enquanto ouvimos Valdomiro sobre a origem da terra, as imagens operam na contiguidade entre o chão e o céu. A Geografia - do latim “descrição da terra” - parece modesta para a descrição do espaço-tempo kaiowá, que, como o filme indicia, embrenha o céu, que preenche a maior parte da tela, e a terra, tema da fala do rezador. Há, nessa cosmologia, uma continuidade vertical no cosmos, com pelo menos 3 outros planos de espaço-tempo (no qual a Terra seria o do meio), até, em outra versão, 10 patamares com 8 diferentes divisões do céu (PEREIRA, 2004). As imagens ao longo de todo o filme são tomadas a partir de um carro em movimento na estrada, fitando fixamente o pôr do sol como um punctum (BARTHES, 1981). O campo da imagem diz tanto do movimento horizontal do carro quanto do trânsito virtual ao céu, em sentido vertical, visível e acessível aos xamãs como Valdomiro (PELBART, 2009; BRASIL, 2016). Esses movimentos remetem ao nomadismo guarani, ao “engatinhar” descrito por Valdomiro. O ponto fixo da câmera, que resiste ao movimento, evoca a obstinação religiosa, fundamental na resistência às condições a que são submetidos os kaiowá na luta pelas retomadas: obstinação que chamou atenção tanto de Vincent Carelli em Martírio (2016) quanto de Darcy Ribeiro (2002), que, frente à forte e permanente relação dos kaiowá com o divino, sugeriu que a vida terrena só lhes importava como plataforma para acessar um espaço mítico. Por fim, evocamos muito equivocamente (VIVEIROS DE CASTRO, 2004) duas outras matrizes de pensamento: primeiro, o pós-colonial indiano Dipesh Chakrabarty e o livro “provincializar a Europa” (2007), que trata de contar uma outra História, não-eurocêntrica. No filme, em paralelismo, o Rio Paraguai não é simplesmente o “berço da terra”, mas o “o coração da terra”: um ponto vital, do qual a vida pulsa e emana para os arredores e que, assim, desloca a História. Os fazendeiros, como Valdomiro ressalta, vêm de outro lugar. Eu diria ainda: devêm outro lugar. Outra relação, dessa vez tendendo à divergência: o Éden, na cosmologia judaico-cristã, trata-se tanto do ponto de origem como de um lugar não mais de direito dos humanos. Genesis é um mito de expulsão desse berço. Jeová diz a Adão após o pecado (BIBLIAON, 2022): “Com sofrimentos obterás do solo o teu alimento, todos os dias da tua vida. A terra produzirá espinhos e ervas daninhas”. O rezador kaiowá, por sua vez, não vive nem a condenação a uma terra maldita, nem a expulsão divina do território originário, nem o rompimento com o modo de vida que lhe é contíguo: “Nós não sabemos o que é dinheiro, vamos a qualquer lugar, e de qualquer lugar voltamos. Vamos até onde não tem fim”. A culpa e o pecado não se imbricam no tempo-espaço da gênese kaiowá: “Se você não se sente alegre, dá uma volta e volta”. Nesse eterno retorno, podem “bem viver”. |
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Bibliografia | BARTHES, Roland. Camera Lucida. New York: Hill and Wang, 1981. |