ISBN: 978-65-86495-05-8
Título | A pior pessoa do mundo: um roteiro audiovisual de ossatura literária |
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Autor | Maria Castanho Caú |
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Resumo Expandido | As palavras de Sonia Haiduc no artigo “ ‘Here is the story of my career…’: the woman writer on film” parecem a princípio compor o retrato de Julie, protagonista de A pior pessoa do mundo (dir. Joachim Trier, 2022), fosse ela uma escritora. A ensaísta diz: “a construção da mulher escritora na tela se alimenta das muitas vezes contraditórias interpretações da autonomia feminina, com a jornada de autodescobrimento dessas personagens sendo construída num contexto de romance, em que o interesse amoroso sobrepõe todas as outras preocupações” (apud Buchanan, 2013, p. 52). Julie, no entanto, muito embora escreva, não é exatamente uma escritora; de fato, ela está sempre no limiar das definições, naquela que é talvez a grande tragédia da geração Millenium: a hesitação permanente frente a uma amplitude de escolhas impensável para seus pais e avós. Traçando um paralelo possível, a inteligência do roteiro de Joachim Trier e Eskil Vogt é justamente erguer sua estrutura em outro limiar, propondo um filme que remete reiteradamente à literatura, mais especificamente aos romances de formação, e joga com a decadência deste gênero frente a uma geração incapaz de se “formar”, de assumir de fato um lugar específico no mundo. Assim, Julie passeia entre a medicina, a fotografia, a psicologia e a literatura; não sabe o que deseja, não decide por ter ou não ter filhos, vive tentando desesperadamente se encontrar, sofrendo de uma permanente sensação de desconexão com relação a tudo que a cerca, quebrada apenas pelos romances que vive. Neste cenário, procura-se investigar os elementos literários utilizados pelo roteiro do filme, incluindo: a divisão em capítulos; a presença do objeto livro (e da livraria, espaço em que a protagonista é inteligentemente encaixada); o ato da escrita; a menção à nostalgia; e, principalmente, o recurso à voz extradiegética semionisciente. Essa narradora, um exemplo do narrador acousmêtre proposto por Chion (1999), é uma voz feminina, uma escolha bastante incomum dentro dessa categoria já rara, que é o narrador não personagem no cinema. Recorrendo pontualmente ao discurso indireto livre (“Julie estava desapontada consigo. Isso já foi mais fácil” são as palavras iniciais) e tendo como personagem refletor Julie, a narrativa se aproxima do que Stanzel (1987) chama de situação narrativa figurativa. É interessante notar que, diferentemente da literatura, espaço em que o narrador extradiegético pode se esconder, como pontua o autor, por detrás de seus personagens, com sua presença deixando de ser notada pelo leitor, no cinema ele causa o efeito oposto: sua existência soa como uma estranha intrusão da literatura no espaço fílmico, e ganha ares de enigma. A pior pessoa do mundo então parece tentar jogar com as (im)possibilidades do romance de formação – esta categoria cuja decadência Moretti (2020) já observava no início do século passado, com a emergência de novos paradigmas sociais –, para a geração Millenium, transpondo-o aqui para o cinema, cujas narrativas estão um pouco mais próximas do coração dessa geração, que viu a transição do analógico para o digital e que, por isso, vive a contradição constante de lidar com o avanço rápido das tecnologias, mas ainda recorrendo aos objetos físicos que marcam a nostalgia de um mundo adulto em que pouco se viveu, em que talvez tenha-se habitado apenas através dos olhos dos pais. Marcando essa dissonância, há um belo diálogo entre Julie e Aksel, seu ex-namorado mais velho. Ele diz: “Eu cresci num mundo em que a cultura era passada adiante através de objetos. Eles eram interessantes porque você podia viver entre eles, pegá-los, segurá-los nas mãos, compará-los”; ao que ela responde: “Um pouco como livros?”. Pois na seara da arte os livros continuam tendo a ressonância de objetos mágicos e o romance segue sendo uma categoria solene, que é aqui utilizada por sua solenidade intrínseca, característica que o filme inteligentemente desconstrói e examina. É essa desconstrução que nos interessa. |
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Bibliografia | BUCHANAN, Judith (org.). The Writer on Film: Screening Literary Authorship. London: Palgrave Macmillan, 2013. |