ISBN: 978-65-86495-05-8
Título | O recriar de mundos em Marinheiro das Montanhas, de Karim Aïnouz |
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Autor | Mariana de Paula Costa |
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Coautor | Daniela Martins Nigri |
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Resumo Expandido | Marinheiro das Montanhas (2021), de Karim Aïnouz, é um diário de viagem filmado na primeira ida do diretor à Argélia. O diretor cearense, filho de uma brasileira e um argelino, traduz em imagens suas memórias, suas impressões sobre o país de seu pai, e os futuros recriados a partir dos encontros nesta jornada. Aïnouz conta ter escutado sobre seu pai aos oito anos de idade e, anos depois, opta por fazer a viagem sem a companhia parental. Nas sequências iniciais do filme, percebe-se as imagens do barco captadas na travessia para a Argélia. O espectador é então transportado para a capital, Argel, e segue em direção à Cabília, região montanhosa de onde vem seus familiares. A montagem do filme produz cruzamentos entre imagens antigas — trechos em super-8 e filmagens caseiras — e imagens realizadas no percurso. Compreende-se as imagens do passado como registros incompletos, partes de um todo em reconstrução. Ademais, "a memória é um certo conjunto, um certo arranjo de signos, de vestígios, de monumentos" (RANCIÈRE, 2010, p.179). Pode-se indagar então de que modo a imaginação e as imagens do real se encontram no filme. Didi-Huberman lembra que a imagem não é um “simples corte praticado no mundo dos aspectos visíveis”, mas é um rastro que toca o real, composto por camadas temporais diversas. Logo, “não há imagem sem imaginação’’(DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 208). Neste sentido, a jornada do filme é narrada em primeira pessoa com a voz em off do diretor, através de cartas escritas para sua mãe Iracema, que não está mais presente. A interlocução subjetiva com essa presença ausente, forja uma interação do espectador com um outro imaginário. Logo, percebe-se este documentário autobiográfico (RENOV, 2004) como uma narrativa fílmica em que o diretor é simultaneamente o sujeito que narra e objeto a quem o filme se refere. Com sequências de imagens entre Fortaleza e Argélia, a montagem produz um signo transnacional no filme. Ao refletir sobre a descolonização da Argélia (1954-1962) e a ditadura civil-militar de 1964 no Brasil, Aïnouz promove um diálogo entre o micro, o núcleo familiar, e o macro, o contexto político dos países em questão. A partir da leitura de Fanon (1979), Aïnouz indaga se seu pai ainda seria atormentado por um passado de sangue, ou se pensaria só no futuro. Bem como outros eventos políticos evocados no filme junto à imagens de arquivo, Aïnouz não presenciou a guerra. Entretanto, Pollak (1992) diz que a memória pode ser constituída por acontecimentos vividos por tabela, ou seja, compartilhados pelo imaginário de um grupo pelo qual se faz parte. Por vezes, as operações mnemônicas engendradas por Aïnouz suscitam uma certa nostalgia. Davis (1979) pontua que a nostalgia opera como um mecanismo de defesa em tempos de mudanças históricas drásticas, pois ajuda a se adaptar às descontinuidades e, assim, pode ser vista como um instrumento de manutenção da identidade. Fragilizado com a perda da mãe e com ameaças à democracia em seu país, o diretor realiza essa viagem “em uma busca por si” e vasculha seu passado familiar à procura de algum alicerce identitário. Segundo Boym (2017), a palavra nostalgia foi forjada pelo médico Johannes Hofer em 1688 para nomear uma patologia caracterizada pelo “desejo de voltar para casa” e advém de duas raízes gregas: nostos, que significa “voltar à casa”, e algia, anseio. Ao longo da história, a palavra nostalgia recebeu diferentes acepções e se transformou da saudade de um lugar para um anseio pelo passado. A nostalgia de Aïnouz parte de uma origem vernacular e alcança o sentido contemporâneo do termo. O resgate desse passado se dá em uma “nostalgia reflexiva” (Boym, 2017), revelando que a saudade e o pensamento crítico não se opõem. Aïnouz questiona a veracidade factual de suas memórias e se os sentimentos da época eram realmente como hoje lhe parecem. Ao repensar o passado e sua própria identidade, Aïnouz vai além: tenta recriar o futuro e se permite sonhar novamente com um Brasil e uma Argélia livres |
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Bibliografia | BOYM, Svetlana. The Future of Nostalgia. Nova York: Basic Books, 2001. E-Book. |