ISBN: 978-65-86495-05-8
Título | Entre a mitologia indígena e o fora de campo em Hamaca paraguaya |
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Autor | Ricardo Lessa Filho |
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Resumo Expandido | É possível transpor uma narração (e narrativa) aos mitos, no sentido que os povos originários devem contar seus relatos ancestrais para preservar a própria identidade cultural? Pode um filme como (2006), de Paz Encina, com o seu pano de fundo mítico-guarani, contribuir para a recordação da história de um povo, da sobrevivência e transmissão de sua cultura, de sua língua? Bem sabemos que o cinema é a uma só vez a arte da imagem e da palavra, e, portanto, ele é capaz de acionar experimentações que busquem atualizar, narrativa e esteticamente, certos padrões imagéticos ou sonoros. Porém, frente ao mito transmitido de maneira silenciosa, como poderá o cinema capturar – tanto pelo campo como pelo fora de campo – a essência do que dele emerge, e inclusive, do que dele resta frente à história e à memória daqueles que ainda são capazes de narrar, apesar de tudo, as ancestralidades e as crenças existentes nestas figuras míticas dos povos originários? Assim, diante da narração mítica que o filme de Paz Encina parece conclamar aberta ou secretamente, ou seja, diante da oralidade essencial a toda constituição do mito, a diretora paraguaia dialetiza essa constituição mitológica a partir da linguagem cinematográfica, realizando um pequeno e surpreendente longa-metragem com exercícios estéticos singulares como o , e, sobretudo, o uso admirável do fora de campo – transformando-o não apenas naquilo “que não vemos” no enquadramento, senão na espectralidade que assombra toda a duração do filme. Desta maneira, perante os mitos lançados no filme que tentaremos discorrer no presente texto, há a uma só vez a memória indígena que escorre nas imagens e nos diálogos da obra cinematográfica, como há também uma outra memória: a do filho raramente nomeado – e aqui compreendido como espectro – que partira para a guerra do Chaco, conflito bélico entre Paraguai e Bolívia, ocorrido entre 9 de setembro de 1932 e 12 de junho de 1935, pelo controle da região do Chaco Boreal. É esta prole que é o fora de campo fundamental nesta narrativa mítica-cinematográfica. Portanto, como mensurar a temporalidade deste espectro cuja presença, em nomeação, dar-se-á sempre como ausência física? Por onde a memória pode ser fabulada para constituir uma narrativa sobre a ausência (a morte) e a dor (arrependimento)? De tal modo, buscaremos compreender e atualizar a maneira como através da narrativa cinematográfica ficcional uma cultura ou língua podem ser ressignificadas à luz das imagens em movimento, isso quer dizer, sobretudo, que o cinema (esta arte capaz de ofertar um movimento aos mortos e aos mitos) tem a potência de fazer ressurgir a história ou a mitologia dos povos originários. E é isso o que Paz Encina, delicadamente, consegue realizar em : um movimento cinematográfico para os vivos e para os mortos, à luz da língua guarani, à luz de uma temporalidade onde os movimentos desacelerados e presentificados em seus protagonistas acabam por romper toda a necessidade da celeridade, da ligeireza dos gestos humanos e estéticos (da montagem, dos ), constituindo-os na própria lentidão dos corpos estabelecidos em uma rede indígena, esperando sem fim a prole (o espectro) voltar da guerra. |
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Bibliografia | Assmann, J. 2016. “Memória comunicativa e memória cultural.” História Oral, 19 (1): 115-128. |