ISBN: 978-65-86495-05-8
Título | Identidades sob rasura no documentário brasileiro contemporâneo. |
|
Autor | Giulianna Nogueira Ronna |
|
Resumo Expandido | Diante da atualidade social e política brasileira, afetada pelo golpe parlamentar do impeachment de Dilma Rouseff, quando os acordos históricos em torno do pacto constitucional e do contrato político foram desfeitos, colocando em risco as bases da reconstrução do estado de direto, e proporcionado que as identidades, sob um ódio reativo, fossem elaboradas “por negação” (SOARES, 2019 p.11), assistimos perplexos os constantes ataques às instituições democráticas, bem como, à celebração pública da violência ocorrida durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Neste contexto, filmes comprometidos com uma revisão crítica da história, sobretudo a respeito do período ditatorial, colaboram para a formação de novos espaços de escuta e reescrita da história, contribuindo para uma leitura crítica do passado e do presente do país. Portanto, nesse texto, busco analisar a forma como o documentário contemporâneo brasileiro articula-se como uma reescrita política a partir de algumas escolhas estéticas e imagéticas que privilegiam o uso do recurso gráfico em seu percurso narrativo, colaborando para que o cinema funcione como um espaço de escrita, ou melhor, de reescrita da história. Filmes como Apiyemiyekî? (Ana Vaz, 2019) e Fico te devendo uma carta sobre o Brasil (Carol Benjamin, 2020), comprometidos com o propósito em examinar o passado, entrecruzando temporalidades, absorvem os deslocamentos da história, suas rupturas e intervalos, ao colocarem a palavra escrita e o traço gráfico em protagonismo na inscrição das identidades narrativas (RICOEUR,2010), uma vez que a compreensão do sujeito, ou melhor, a impossibilidade de sua apreensão única, é atravessada pelo “caráter linguístico (langagier/sprachlich) da experiência” (GAGNEBIN, 1997, p.266), bem como, pela dimensão poética e narrativa através da escritura, pois “a história de uma vida é uma história contada” (RICOEUR, 2010, p. 418). Sendo assim, estas construções, dialogando com o ensaísmo e as modulações biográficas, ao recorrerem à palavra escrita e aos desenhos, a partir de arquivos pessoais e históricos, como uma via de acesso às subjetividades, acabam interferindo e desconstruindo a representação dos sujeitos biografados, revelando personagens e comunidades fraturadas, de difícil apreensão, resistentes a uma única leitura, logo, instáveis, sob rasura (DERRIDA, 1991).Dessa forma, o documentário contemporâneo brasileiro, é aqui interrogado no encontro com a palavra escrita e o traço gráfico; quando ambos assumem no percurso narrativo um instrumento de configuração temporal, trazendo camadas da história à superfície, expondo tempos diversos, revelando ausências, visto que, na perspectiva do traço (DERRIDA, 2010), a palavra e o desenho carregam o aspecto da invisibilidade, sugerindo um exterior à imagem. Da mesma forma, ao indagar como a recorrência gráfica age na elaboração das identidades narrativas, são também absorvidas reflexões acerca da insuficiência da linguagem ao narrar o trauma e a dor, bem como, a espectatorialidade inerente ao traço (DERRIDA, 2010), aquilo que escapa ao olhar e ainda assim constitui a obra, o exterior, o fora de uma representação. Nesse sentido, sendo o não visível parte do filmado (COMOLLI, 2008), a concepção cinematográfica de uma realidade, quando elaborada a partir daquilo que falta no traço posto em cena, interfere na compreensão dos eventos, reconfigurando a experiência histórica do espectador. Portanto, ao trazer para a construção narrativa os aspectos não visíveis ou ausentes, não fixando as identidades, colocando-as ‘sob rasura, estes documentários apresentam-se como uma reescrita política, acercando os silêncios e as ausências históricas, interrogando os aspectos narrativos, afetivos e subjetivos de territórios temporais distintos, e assim, apreendendo as identidades narrativas e históricas somente nos traços que as supõem. |
|
Bibliografia | COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida – cinema, televisão, ficção, documentário. Trad. Augustin de Tugny, Oswaldo Teixeira e Ruben Caixeta. Belo Horizonte: UFMG, 2008. |