ISBN: 978-65-86495-05-8
Título | Uma imagem em relação a outra: Harun Farocki e a operação comparativa |
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Autor | LUÍS FELIPE DUARTE FLORES |
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Resumo Expandido | Harun Farocki (1944-2014) foi um dos principais expoentes do cinema ensaístico e documental da segunda metade do século XX. Ao longo de quase 50 anos de atuação (de 1966 a 2014), realizou cerca de 100 filmes com atributos variáveis, incorporando com frequência ao processo de montagem operações racionais, como comparações, desvios, descobertas, interpretações, associações, suspensões, hipóteses e classificações. Sua extensa filmografia, composta por faces diversas, não poderia ser reduzida a uma delas apenas. Não obstante, o realce frequente das operações de cotejo, para relacionar os elementos dos filmes, convida a investigar o princípio mesmo da comparação praticado pelo cinema de Farocki. No início de Interface (Schnittstelle, 1995), espécie de balanço tácito de seu ofício cinematográfico, o cineasta aparece em cena para afirmar sua verve relacional e comparatista: “Hoje em dia, mal posso escrever uma palavra se não houver uma imagem na tela ao mesmo tempo. Na verdade, em ambas as telas. Há duas imagens vistas ao mesmo tempo, uma imagem em relação a outra” (grifo nosso). Boa parte de seu trabalho com as imagens busca promover confrontações entre termos díspares, observando as aproximações, disparidades ou iluminações recíprocas, e engendrando, enfim, novas chaves de leitura ou interpretação. Na abertura de Fogo inextinguível (1968), o recurso à comparação vem explicitar a violência das bombas de napalm lançadas pelos Estados Unidos contra o Vietnã. Em vez de ostentar fotografias aterradoras dos corpos devastados dos vietcongues, Farocki queima a própria pele com o cigarro, fornecendo um vínculo distanciado de similitude. O resto do filme traz três blocos de variações argumentativas: 1) contraste entre dois modelos de produção industrial aplicados à obtenção do napalm; 2) contraste entre o despejo de produtos químicos nos EUA/Europa e nos países de Terceiro Mundo; e 3) variações do relato de um operário que rouba peças de aspiradores de pó na fábrica. Nessa rede dialética de comparações, advém um ponto de vista renovado para a compreensão da violência no Vietnã a partir das condições de vida e produção em Berlim Ocidental. A postura comparatista ressurge intensificada nos filmes-ensaio do cineasta, em particular Como se vê (Wie man sieht, 1986) e Imagens do mundo e inscrição das guerras (Bilder der Welt und Inschrift des Krieges, 1988). Neles, os gestos de cotejo vêm energizar a dinâmica argumentativa, promovendo desvios sinuosos e relações insuspeitadas nos fluxos de pensamento. Em giros de síntese e transferência dialética, a montagem combina, dentre outras coisas, a construção de rodovias de alta velocidade à Alemanha nazista, a imagem pornográfica ao cálculo diferencial, o Iluminismo às tecnologias de destruição a distância (em particular no âmbito da ameaça atômica). Mais tarde, nas instalações baseadas em mais de um canal, a comparação adquire simultaneidade cruzada — um aprendizado que remete a Número dois (Número deux, 1975), de Godard, conforme Farocki indica no texto “Influências transversais/montagem flexível” (FAROCKI, 2015). A verve comparante aparece, inclusive, no título de algumas dessas obras, como Em comparação (Zum Vergleich, 2007), que faz alternar a produção de tijolos em locais diferentes do globo, e Paralelo (2012-2014), que explora imagens de videogames. Sem dúvida, os gestos de cotejo integram de maneira decisiva o ritmo da montagem farockiana, fomentando reflexões sobre a realidade social e propiciando, para elas, um prisma abrangente de compreensão relacional. Sendo assim, interessa pensar as dinâmicas distintivas dessa estratégia comparatista, no projeto de um artista que, como poucos, soube enfrentar criticamente as imagens do mundo, em sua trama complexa de conexões midiáticas e de contextos sociais. |
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Bibliografia | BLÜMLINGER, C. “Incisive divides and revolving images: On the installation Schnittstelle”. In: ELSAESSER, Thomas. Harun Farocki – Working on the sightlines. Amsterdã: Amsterdam University Press, 2004, pp. 61-66. |