ISBN: 978-65-86495-05-8
Título | Performatividade no arquivo audiovisual em Cuatreros (2016) |
|
Autor | Clara Bastos Marcondes Machado |
|
Resumo Expandido | A presente comunicação se debruça sobre o longa-metragem Cuatreros (2016), da realizadora argentina Albertina Carri. Cuatreros se desenvolve a partir da busca da diretora por um filme argentino desaparecido, filmado nos anos 1970, que teria sido baseado em um livro escrito por seu pai sobre o rebelde gaucho Isidro Velázquez. Narrado quase ininterruptamente pela voz over de Carri, o Cuatreros desdobra a busca pelo filme em uma tentativa de fazer um filme próprio sobre Vélazquez, e, por fim, em uma série de questionamentos acerca da história familiar da diretora, cujos pais desapareceram durante a ditadura militar argentina. Enquanto a voz de Albertina discorre sobre sua saga quase como um diário, uma multiplicidade de imagens de arquivo é cotejada em uma tela que se desdobra por vezes em até cinco imagens simultâneas. As imagens utilizadas são impessoais, um arquivo disperso e heterogêneo contendo trechos de filmes de ficção, animações, publicidades e reportagens, entre outros, que retratam a Argentina dos anos 1970, mas a narração over promove uma enunciação autobiográfica marcada pela subjetividade, e que demarca de forma reiterada o seu lugar de enunciação - de mulher branca, lésbica, burguesa. Embora ausente das imagens, o corpo da realizadora vai progressivamente tomando a cena ao longo do filme, através da narração, conforme a busca de Carri é entremeada por seu processo de gravidez, puerpério e, por fim, pela figura de um ácido que corroe seu organismo e que culmina na dissolução de seu casamento. Na narrativa de Carri, o processo de recuperação de memória é constantemente atravessado pelo corpo. Me interessa então, analisar de que forma a mobilização do arquivo fílmico em Cuatreros pode contribuir com uma linguagem feminista de arquivo, ao introduzir com centralidade em sua forma fílmica a presença do sujeito que se apropria das imagens. Além disso, a mobilização das imagens parece romper com uma hierarquização tradicional do arquivo, seja pela escolha das fontes ou pela montagem. Ao lado de reportagens, institucionais e documentários mais próximos da história política oficial há filmes eróticos e propagandas, em geral tidos como de valor inferior. A montagem acumula diferentes imagens na tela simultaneamente, desafiando a apreensão do espectador, e criando ressonâncias e deslocamentos através da repetição de personagens e signos. O atravessamento de gênero no arquivo cinematográfico tem chamado progressiva atenção da academia. A autora Catherine Russell defende a necessidade de um despertar das dinâmicas de gênero dos arquivos. “Dado o profundo engendramento da cultura da imagem do século XX e a misoginia sistemática de seu arquivo, o modo mais urgente e imediato de despertar diz respeito, talvez, ao desvio da imagem da mulher” afirma a autora, defendendo que tal ‘despertar’ teria como objetivo a restauração da subjetividade, agência e trabalho das mulheres (RUSSELL, 2018, p. 184). Já Domietta Torlasco propõe o termo “arquivo herético” para uma forma de trabalho com arquivo a partir do digital que marca um lugar de resistência em relação aos mecanismos tradicionais de reconhecimento, preservação e recuperação da memória. Torlasco propõe imaginar “um legado indisciplinado, poroso e incoerente, que se apropria com desobediência de uma certa história em vez de tentar negá-la” (TORLASCO, 2013: vii). Trata-se de pensar de que forma “uma linguagem de arquivo pode coincidir com uma crítica feminista e uma linguagem fílmica feminista” (RUSSELL, 2018, p.191), uma arquiveologia própria, que trabalharia contra a ordem do patriarquivo (DERRIDA, 2001). O arquivo em Cuatreros é fugidio, excessivo, e não oferece as respostas que nele se buscam. Defenderemos que o filme aponta para uma linguagem de arquivo feminista, ao negar a pretensão de neutralidade e racionalidade, em direção a uma ideia de performatividade que se coloca a partir da demarcação da posição de subjetividade e da incorporação das contingências da memória. |
|
Bibliografia | BARRENHA, Natalia e PIEDRAS, Pablo [orgs.]. Silêncios históricos e pessoais: memória e subjetividade no documentário latino-americano contemporâneo. Campinas: Editora Medita, 2014. |