ISBN: 978-65-86495-05-8
Título | Carpenter disse: “Haja luz!”, e ele viu que a luz era trevas |
|
Autor | ANTOINE NICOLAS GONOD D ARTEMARE |
|
Resumo Expandido | De que maneira as instrumentalizações da luz e das trevas pela Igreja cristã colonizaram o pensamento da luz na fotografia cinematográfica? Argumentaremos a hipótese de que o imaginário cristão da luz moldaria, ainda que de forma inconsciente, a cinematografia de determinados filmes. Para defender essa ideia, analisaremos a fotografia de Fausto (1926) e A bruma assassina (1980) que colocaremos em paralelo com o estudo de outras materialidades cristãs da luz que foram mobilizadas pela Igreja no intuito de exercer um poder sobre as mentes e os corpos. A luz possui uma grande importância e polissemia dentro da cultura e da cosmogonia cristã, segundo as quais o mundo teria se iniciado por meio da fala divina — o verbo — mobilizando a luz no gesto de criação. Conhecemos essa história: “Deus disse: ‘Haja luz’, e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz ‘dia’ e às trevas ‘noite’” (Bíblia de Jerusalém, 2002, Gênesis 1:3-5). Há, nesse gesto inicial, não apenas uma separação, mas também uma hierarquização, ao proferir uma supremacia da luz (CUBITT, 2014). Nesse sentido, percebemos uma interligação essencial entre a luz e as trevas, a primeira não podendo existir — e dominar — sem a oposição dialética com a segunda. Através dessa narrativa mitológica, uma relação de força é estabelecida entre luz e escuridão — ou melhor, entre luz e trevas. Tal dialética se expressou não apenas nos textos religiosos, mas também nas diferentes materialidades da luz mobilizadas pela Igreja cristã no intuito de moldar e de controlar, de diferentes formas e em diferentes graus, as condutas e os pensamentos da comunidade religiosa. É a partir do diálogo com essas materialidades que analisaremos a fotografia de Fausto (1926) e A bruma assassina (1980). A nosso ver, Fausto (1926) reflete e perpetua de maneira paradigmática esse imaginário cristão da luz. Para defender essa ideia, buscaremos apontar as comunalidades de sentidos, valores ou lógicas entre a luz mobilizada no filme e as lanternas dos mortos. Construções medievais datando da época romana, as lanternas dos mortos localizavam-se em cemitérios de determinadas regiões da França. Elas eram compostas por uma torre acima da qual se encontrava uma lanterna que era acesa à noite, tal como relata a historiadora Cécile Treffort (TREFFORT, 2001). Para a autora, essas lanternas nos permitem apreender não apenas a origem divina da luz e seu caráter positivo — em relação à negatividade das trevas — mas também sua dimensão protetora contra forças maléficas nesses espaços. Sentidos esses que são justamente mobilizados pela cinematografia de Fausto (1926), como buscaremos argumentar. Em drástica oposição ao cristianismo da luz do filme de Murnau, analisaremos a luz de A bruma assassina (1980) de John Carpenter no intuito de assinalar como o filme opera uma reviravolta em relação ao código maniqueísta que opõe o claro e o escuro na cultura cristã. Por outro lado, apesar de uma aparente profanação da luz no filme, argumentaremos que tanto Fausto (1926) quanto A bruma assassina (1980) mobilizam a luz de acordo com lógicas e estratégias próximas àquelas desenvolvidas pelo padre Athanasius Kircher em seu livro Ars Magna Lucis Et Umbrae [A Grande Arte da Luz E da Sombra]. Na obra, o padre jesuíta descreve diferentes aparatos óticos (como lanternas mágicas e câmeras escuras) em que a luz é mobilizada no intuito de produzir trevas, espectralidades, demônios, marcando, dessa vez, a presença de forças maléficas e ameaçadoras — de tal modo a se estabelecer como dispositivos de reafirmação de fé para os fieis-espectadores. Um emprego cristão da luz que se inscreve, a nosso ver, nas estratégias econômicas analisadas pela filósofa Marie José Mondzain (MONDZAIN, 2013). Ao decorrer desse caminho, ambicionamos assinalar de que maneira os filmes analisados se aproximam ou se afastam dos sentidos, valores e lógicas associadas a luz na cultura cristã. |
|
Bibliografia | Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. |