ISBN: 978-65-86495-05-8
Título | Cinema com mulheres e continuum cuir |
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Autor | Carla Ludmila Maia Martins |
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Resumo Expandido | “Imagina uma travesti sendo a cobra na história da criação?” ouvimos em "Sessão Bruta" (2022), filme assinado pelo coletivo Talavistas e ela.Ltda, “rodado a quente com uma câmera Mini-DV, em 2018, sem grandes preparativos, mas com muito suor e cerveja, como uma sucessão de prólogos de um filme sempre por fazer.” Unidas pelo “desejo de pegar para si uma fatia do mundo”, as artistas Cafézin, Darlene Valentim, Duca Caldeira, Dyony Moura, Yunni Ferreira, Pink Molotov, Vidrynha, Ventura Profana, Podeserdesligado e Wendy Loyola performam e discursam sobre o processo criativo do filme e para o filme, tomando de assalto a cena que é negada a pessoas trans, travestis e não-binárias no cinema. Na história de Adão e Eva, elas são a cobra: serpenteiam como protagonistas no espaço entre o homem e a mulher, perturbam os limites impostos pelo Senhor todo-poderoso. Sabemos quão opressores podem ser tais limites, constantemente reafirmados na cultura, nas artes, nas instituições, assim como na radicalidade do discurso feminista hegemônico. De modo mais ou menos sutil, esses limites também estão dados nos modos de representação de pessoas pretas, trans, travestis e não-binárias, quase sempre criados segundo perspectivas de pessoas brancas, heterossexuais e cisgênero que formam maioria nos espaços de realização cinematográfica. Em Sessão Bruta, que resulta da aliança de artistas pretas, trans, travestis e não-binárias com uma cineasta branca e cisgênero, esta tensão é constitutiva, mobiliza o pensamento. Na tentativa de inventar o mundo em estado bruto, sem as lapidações/lacerações/dilacerações de um “cis-tema” heternormativo, colonial e patriarcal que lhes nega acesso, as diretoras expõem as relações heterogêneas que movem o filme em todos os seus conflitos, aberturas e contradições, multiplicando e descentralizando suas vozes. Em companhia de Sessão Bruta, propomos avançar nosso estudo sobre um cinema com mulheres, atualizando a proposta que trouxemos no último encontro da Socine, em 2021. Na ocasião, eu revisitava a ideia de “amizade feminina”, central em minha tese de doutorado (MAIA, 2015), para atualizá-la a partir de alguns filmes que só conheci depois, dentre eles, Kbela (Yasmin Thayná, 2015), Minha história é outra (Mariana Campos, 2020) e Quebramar (Crys Lira, 2019). Tais filmes me ajudaram a repensar a “amizade feminina” à luz do conceito de "continuum lésbico", de Adrienne Rich. Em seu ensaio “Heterossexualidade compulsória e existência lésbica” (1980), Rich identifica mecanismos de apagamento das histórias e relações de afetos entre mulheres, resultante de uma cultura heteronormativa e patriarcal. Contra esse apagamento, Rich propõe a tarefa de expandir a própria compreensão da experiência lésbica, para além de relações centradas no sexo entre amantes, em direção a múltiplas manifestações de vínculo entre mulheres: um continuum lésbico, que abrange desde o amor entre mãe e filha até as relações de cuidado e acolhimento decisivas nas experiências vividas por mulheres, seja qual for sua orientação sexual. O ensaio se dirige às mulheres, às heterossexuais em particular, mas ainda em perspectiva evidentemente cis-centrada. Manifestações do que propus considerar como “continuum lésbico”, as cenas de cuidado e afeto que encontrei nos curtas compuseram uma espécie de fio condutor do trabalho anterior. Dentre elas, cenas recorrentes de cuidado capilar: filme após filme, as mulheres aparecem tratando, penteando ou cortando os cabelos umas das outras, como que tecendo, fio a fio, sua rede de proteção. Desta vez, gostaria de acrescentar ao fio uma cena do início de Sessão Bruta, em que uma das protagonistas descolore o cabelo com ajuda da amiga. A partir desse ponto de continuidade (e não de intersecção), investigamos as possibilidades de um “continuum cuir” para o cinema, em que o que não tem espaço pode surgir em todo lugar (para lembrar Jota Mombaça), apontar para uma comunidade sempre por se fazer, em vias de se inventar. |
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Bibliografia | BUTLER, Judith. Gender Trouble. New York and London: Routledge, 1990. |