ISBN: 978-65-86495-05-8
Título | A imagem enquanto gesto em Fernand Deligny |
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Autor | Maria Bogado |
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Resumo Expandido | O interesse pelos processos atravessa diferentes correntes estéticas nos anos 1960 e é um dos marcos da passagem da arte moderna para a arte contemporânea. Nesse contexto, integrantes do Fluxus e situacionistas, apresentam tentativas de retirar o cinema de um campo autônomo de apresentação de produtos acabados para inscrevê-lo em contextos mais amplos interessados em diferentes modos de compartilhamento do fazer e do ver junto, em diálogo com outras formas de arte. Na mesma década, os cinemas militantes ganham importância também descentrando o cinema enquanto campo autônomo, desta vez no contato direto com as ações políticas. Esses distintos deslocamentos nos lançam diante de uma possível concepção da imagem enquanto gesto. Neste mesmo período, uma figura ainda em descoberta, mas cujas reflexões se apresentam cada vez mais contemporâneas, radicalizava em muito o interesse pelo processo das práticas cinematográficas independente da constituição de um produto autônomo. Trata-se de Fernand Deligny. Para ele, os processos cinematográficos valem pelos gestos que suscitam na coletividade em que se inserem. Fernand Deligny frequentemente elogiava a errância e o acaso, em contraposição a possibilidade de elaboração de um pensamento programático. Sua trajetória, em viva continuidade com esses princípios, permitiu uma errância que o fez transitar da educação, à clínica, da literatura, ao cinema, das palavras às imagens, em idas e vindas incessantes, constantemente atravessando as margens que separam esses campos. Em todo esse percurso, sempre em contato com indivíduos marginalizados pela sociedade, a imagem foi uma ferramenta crucial para a construção do que ele chamava de uma “vida em comum”. De distintas formas, busca pensar a imagem por duas vias principais. Em primeiro lugar, como ferramenta de observação, como uma ampliação das formas de compreender uma coletividade. A partir do modo ampliado de ver e se expressar apresentado pelas imagens, Deligny se aproxima da possibilidade de perceber e registrar um campo de ações no qual deposita grande interesse: os gestos. Passa a compreender, então, também a própria imagem como um gesto. Seja os gestos das mãos sobre papéis, nas composições de desenhos e mapas, ou o ato de filmar tomado como gesto. Esse ato, importante em si mesmo, ele nomearia com um infinitivo: “camerar”. A atividade cinematográfica irá permear suas práticas tanto com os jovens infratores como com as crianças autistas. A imagem enquanto gesto aproxima-se das ações autistas: elabora-se no presente, com a implicação do corpo que a faz, sem passar totalmente por um controle intencional mediado pelo campo simbólico. Deligny chega a formular uma noção de imagem autista, essa que dispensa ou mesmo impossibilita interpretações. A palavra, diante dessas imagens, será distante ou impossível, como o é para essas crianças que não se comunicam a partir dela. A imagem torna-se tão estrangeira e imprevisível aos homens como os animais selvagens. Longe de ser imaginada, a imagem aparece inadvertidamente. Indomesticável, apresenta-se como uma possibilidade de fraturar certos limites da imaginação subjetiva, e portanto, das elaborações do comum. Em vez de filmar, que pressupõe um filme acabado, com alguma assinatura que a possui, seja de um autor ou coletivo, Deligny prefere “camerar”. Esse ato que se sustenta infinitivo, não comporta nem sujeito, nem objeto. Compreende-se a imagem não como um meio de comunicação, mas como ferramenta de ação. A imagem não como o suporte de uma fala elevada, de um significado transcendente que cala o espectador, mas como gesto. Gesto sempre impróprio, sempre fruto das relações imanentes do meio que as constitui. Gesto que gera outros gestos, gesto que transforma esse meio constituinte na temporalidade aberta de um jogo infinitivo de co-constituição. Essa concepção da imagem enquanto gesto pode contribuir para formar perspectivas éticas como norte para pensar a relação entre estética e política. |
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Bibliografia | AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo. In: ______. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. |