ISBN: 978-65-86495-06-5
Título | Quando a paisagem esconde o rosto |
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Autor | Eduardo Azevedo Medeiros |
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Resumo Expandido | Em sua série O infarto da alma (1994), Paz Errázuriz, fotógrafa chilena, retrata companheiros apaixonados dentro de um sanatório na pequena cidade de Putaendo do Chile. Os retratos são feitos em primeiro plano, e a partir dessa abordagem próxima, fruto de um a relação de anos com os fotografados, Errázuriz revela uma heterotopia, um bolsão de afeto em meio a um espaço de constrangimento, de retenção e separação. Os personagens de Errázuriz para o regime sensível hegemônico, são doentes, desviam do modelo de subjetividade classificado como aceitável, devem ser separados dos demais. O amor, nessa lógica, parece ser um privilégio dos sujeitos “sãos”. Os retratos de Errázuriz rasgam de cima a baixo essa ficção, no sentido rancièreano, revelando uma outra realidade que acontece a margem, onde a subjetividade hegemônica é confrontada por semelhanças, nestes seres considerados tão estranhos. Uma das fotografias, entretanto, destoa das demais. Essa imagem não é um retrato, é uma paisagem. Nela temos quatro pacientes, distantes entre si, onde predomina o desolador cenário do sanatório. O estranhamento nessa imagem é substituído pela dor, retornamos ao que se espera dos internos, o lugar da vítima. Ao fotografar retratos em primeiro plano dos pacientes, Errázuriz exclui o espaço de sofrimento que os cerca e a partir dessa operação a fotógrafa emancipa os sujeitos e faz surgir ali um rosto, no sentido do conceito do filósofo lituano Emmanuel Lévinas (1999), um encontro com a alteridade, fazendo surgir um clamor ético no espectador. Esse confronto com o outro não ocorre na fotografia que destoa. Isso se da, defendemos, porque a paisagem engole o rosto. A paisagem é um discurso (BESSE, 2014), a arquitetura dos espaços de contenção e disciplina, segue um pensamento totalitário que gera uma paisagem totalitária. Os retratos de afeto entre os internos mostram as brechas, as fissuras nesse universo, evidenciam que existem ficções paralelas a que tenta se apresentar como o único real. Para que surja o rosto dos fotografados, nesse caso, é preciso excluir a paisagem. Aqui podemos encontrar a obra de László Nemes, O filho de Saul (2015). O filme húngaro segue a jornada de Saul, um membro do Sonderkommando, um grupo de prisioneiros judeus, que durante a Segunda Guerra, nos campos de extermínio nazistas eram responsáveis pelas mais árduas tarefas, como a limpeza das câmaras de gás e o enterro de corpos. Um dia, após o extermínio de um grupo de prisioneiro, limpando a câmara, Saul se depara com uma criança que ainda respira. O pequeno acaba por falecer, mas Saul é tocado a ponto de reconhecer a criança como seu filho e iniciar o plano de roubar o seu corpo, salvá-lo do fogo, e lhe dar um enterro digno seguindo as tradições judaicas. Durante todo filme a câmera está presa a Saul, acompanhamos seu percurso como se o seguíssemos, vemos seu rosto magro, sua nuca, caminhamos em sua companhia por aquele inferno. Vemos Saul esfregar o chão da câmara de gás, a água suja de sangue, mas nunca vemos os corpos, apenas a suas silhuetas, nunca vemos a paisagem em plano aberto. A profundidade de campo reduzida dá espaço a imaginação, o foco em Saul faz surgir o rosto, a paisagem aqui não pode desviar o nosso olhar, não se trata mais de um humano que é engolido, mas o espectador está ali, ele vê e imagina o horror a partir das reações de Saul, de suas expressões, seus movimentos e dos borrões e que o cercam. Para o autor Didi-Huberman (2015), em um comentário sobre o filme, apenas o agressor poderia ver esse sofrimento a distância, o enquadramento de Nemes faz o contrário, ao mesmo tempo que nos apresenta a experiência do horror vivida pelos prisioneiros judeus, oferece o mesmo que Saul busca oferecer a criança morta em meio a escuridão, dignidade. As imagens-movimento de Lázló Nemes e os retratos de Páz Errazuriz desviam do que se espera, essas vítimas deixam se de ser peças, se apresentam como os humanos que são, confrontam o espectador, revelam seu rosto. |
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Bibliografia | BESSE, J. O gosto do mundo: exercícios de paisagem. As cinco portas da paisagem. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2014. |