ISBN: 978-65-86495-06-5
Título | O vil barbeiro e as Sonatas de Beethoven |
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Autor | Guilherme Maia de Jesus |
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Resumo Expandido | O filme "O homem que não estava lá" (Joel & Ethan Coen, 2001) conta a história de Ed Crane, um barbeiro conformado com uma vida medíocre de empregado do genro, dono da barbearia, e um casamento desprovido de respeito mútuo e afeto. Eu um confronto com Dave, patrão e amante de Doris, sua esposa, Crane mata Dave. Equivocadamente, Doris é condenada e presa pelo crime que o barbeiro cometeu, mas ele não confessa e ela acaba por cometer suicídio na prisão, antes que as investigações e o acaso conduzam ao verdadeiro culpado. Embora fortemente marcado por elementos da audiovisualidade noir (P&B, ambientes e rostos sombrosos, constante narração extradiegética), no que diz respeito à sua musicalização, contudo, o filme adota uma estratégia inusitada, ao optar por dar protagonismo a obras do repertório de concerto, com forte ênfase nas seções intermediárias e lentas das obras de Ludwig Van Beethoven. No exame de um conjunto de cerca de 30 obras emblemáticas do cinema noir clássico e moderno, utilizadas como corpus de controle na pesquisa que gerou essa comunicação, foram detectados projetos de musicalização que podem diferir na dimensão da instrumentação e até mesmo do gênero musical, mas que compartilham invariavelmente a estratégia de produzir, tal como a fotografia e a iluminação, sensações e atmosferas sombrias, pesarosas e desarmônicas, que aderem completamente às sensações e aos sentimentos que emanam do protagonista e da narrativa . Já as seções de sonatas da história de Ed Crane são, para usar expressões de Lewis Lockwood (2005), “um oásis emocional entre tempestades”, peças compostas com o objetivo de oferecer à apreciação um “consolo para a escuridão emocional” e para a turbulência amedrontadora dos movimentos adjacentes. Partindo de reflexões sobre o cinema noir (Saada, 2004; Silver & Ward, 1992), sobre usos e efeitos da música pré-existente no cinema (Alvim, 2020; Powrie e Stilwell, 2006) e do estudo de Lockwood (2005) sobre a recepção histórica de Beethoven, o filme dos irmãos Coen foi analisado tendo como objetivo examinar até que ponto a quebra desse elo invariável do noir entre áudio e visual afeta potencialmente a experiência de apreciação e nos revela algo sobre a natureza do protagonista que o filme quer entregar à fruição. Em síntese, o que a análise do projeto de musicalização do filme nos revela, para além do caráter raro e minuciosamente específico das escolhas, é uma instância poética bem informada, que, com muito bom humor, organiza a malha musical em um grau de imbricação com a narrativa audiovisual de sofisticado apuro formal e semântico. Não há pontas soltas nem ligações fracas: tudo faz sentido. A música, ademais, faz com que o filme seja percebido como uma dança lenta e envolvente; tinge de nobreza a história do homem vil; participa do quebra-cabeça intertextual; e oferece uma camada generosa de beleza clássica. Se, em alguns momentos raros, a música se dedica a expressar os sentimentos do personagem – como no caso da Sonata ao Luar após o suicídio de Doris -, na maioria dos casos ela parece se descolar de Ed para se dirigir à cognição e ao coração do espectador, contribuindo para que "o homem que não estava lá" seja perdoado por suas vilezas e guardado na memória como um nobilíssimo personagem da história do cinema, protagonista de um filme que, muito provavelmente, é o primeiro e único noir da História cujo ponto final visual é uma tela cem por cento preenchida pela cor branca, em conjunção com um acorde perfeito maior. |
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Bibliografia | ALVIM, Luíza Beatriz. “Música preexistente, leitmotivs e retornos no cinema de Jacques Demy dos anos 1950 e 1960.”. In: Revista Contemporanea, v. 18 n. 1, 2020. |