ISBN: 978-65-86495-06-5
Título | A ética da escuta radical de Agnès Varda em Os catadores e eu |
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Autor | Fernanda Albuquerque de Almeida |
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Resumo Expandido | Os catadores e eu (2000) é um dos filmes mais conhecidos de Agnès Varda (1928-2019). Consiste em um documentário de longa-metragem no qual a cineasta se apresenta como personagem que perambula por regiões metropolitanas e rurais da França em busca do diálogo com catadores de restos de alimentos. Como o título sugere, o filme explora um duplo movimento de, por um lado, apresentar entrevistas e fragmentos da vida de alguns catadores e, por outro lado, retratar a “catadora de imagens”, que é própria cineasta. Um aspecto destacado em estudos e na recepção crítica é a dimensão política do realce particular dos catadores (WILSON, 2002; MURCIA, 2009; CHAREYRON, 2013). Considerando tais exames prévios, bem como uma aproximação entre cinema e filosofia, nesta comunicação, proponho explicitar os mecanismos pelos quais é possível caracterizar uma “ética da escuta radical” de Agnès Varda, por meio de uma análise interpretativa dos jogos político-poéticos que a cineasta realiza entre figuras e linguagens artísticas que recolhe e combina como uma trapeira contemporânea. Longe de buscar uma apreensão totalizante do filme, pretendo, tão somente, elencar e analisar sequências exemplares que, por meio desses jogos, sugerem uma especial atenção a formas de acolhimento da alteridade. Essa perspectiva difere das costumeiras visões acerca da inserção de sua subjetividade no documentário. Geralmente, tal inclusão é tomada como elemento que permeia a constituição de um cinema autobiográfico ou ensaístico. No primeiro caso, os filmes de Varda são imbuídos de um “narcisismo encantador” (ESCOREL, 2019). No segundo, ressalta-se “um esboçar contínuo do eu à medida que ele se dissolve no mundo” (CORRIGAN, 2015, p. 75), uma “grande aventura de incorporações” (BERNADET, 2006, p. 27) ou então uma zona de indiscernibilidade que visaria sugerir que “o outro deixa de ser uma instância separada do Eu/Cineasta [...] para se tornar um devir que se realiza na interação do encontro” (YAKHNI, 2014, p. 208). Distintamente desses modos de compreensão, penso que Varda mantém as diferenças entre os catadores e a catadora, ainda que eles sejam tomados como metáfora da cineasta em seu trabalho de recolher fragmentos do mundo para então combiná-los em seus filmes – algo análogo ao que fez Charles Baudelaire ao considerar as ações do trapeiro uma metáfora do seu trabalho enquanto poeta. Se, por um lado, a diretora se aproxima dos catadores, com eles dialoga, repete seus gestos e institui uma forma de representação democrática; por outro, distancia-se deles, já que sua constituição como catadora de imagens é evidentemente distinta da condição dos catadores de restos de alimentos e, do ponto de vista ético, sugerir qualquer tipo de apagamento de fronteiras entre ambos seria no mínimo duvidoso. Para além de uma aproximação e de uma metaforização cuidadosas e até amorosas, uma estratégia que a cineasta efetua para contrabalancear essa espécie de dramaturgia do contato impossível é colocar-se em tela, expondo-se em sua fragilidade, isto é, enquanto mulher que, aos 72 anos, está sendo interpelada pela finitude ao deparar-se com seus cabelos embranquecidos e suas mãos enrugadas. Assim, se é possível falar em uma dissolução do eu em Os catadores e eu, esta não ocorre de todo e qualquer modo, mas, especificamente, como uma disposição voluntária de esvaziamento de si, visando acolher a alteridade – seja ela pertencente aos catadores ou à duração. (HAN, 2022) Mais do que uma ética de filmagem, essa disposição transposta em forma fílmica suscita uma forma de vida similar à seguinte síntese de Jean Galard (1984, p. 120): “Ser outro em si mesmo resume-se nisto: não ser desertado, nem possuído, mas exatamente o que se chama ser ‘habitado’.” Habitar o outro e deixá-lo “me” habitar, sem que isso signifique deserção nem possessão, parece um caminho propício para o entendimento da ética da escuta radical exercitada pela catadora de imagens. |
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Bibliografia | BERNADET, J-C. Os catadores e eu. In: BORGES, C.; CAMPOS, G.; AISENGART, I. (Org.) Agnès Varda: o movimento perpétuo do olhar. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2006, p. 25-27. |