ISBN: 978-65-86495-06-5
Título | Dança do arquivo: notas sobre repetição e violência em "Tekoha" |
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Autor | Nicholas Andueza |
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Coautor | Alexandre Wahrhaftig |
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Resumo Expandido | "Tekoha" (2022), de Carlos Adriano, é um curta-metragem que retoma imagens feitas em 2021 e 2022 por membros da etnia Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Por meio de seus celulares, eles registraram incêndios de casas e ameaças com armas de fogo, crimes cometidos por seguranças privados e grupos fundamentalistas evangélicos. As imagens são feitas com alguma distância física dos eventos; algumas delas, inclusive, estão imersas no breu quase total da noite. A relativa distância, o registro tremido, a pouca visibilidade e os gritos demonstram com clareza a urgência e o risco real sofrido pelas pessoas ali presentes. Diante de tais imagens, tão violentas, tão imediatas mas ao mesmo tempo tão lacunares, o filme propõe fragmentações brutais: justaposições, pausas, repetições, cruzamentos transtemporais com outros registros – gravações de cantos Ñengary Guarani Kaiowá (2000), filmagens de Dina e Lévi-Strauss (1935) e do Major Thomaz Reiz (1932). O complexo jogo da montagem com o arquivo faz explodir a polissemia das imagens, mantendo clara, contudo, a infeliz linha guia dos genocídios indígenas. Sem ser fetichizado ou usado como ilustração, o material registrado pelos Guarani Kaiowá é ostensivamente trabalhado, retrabalhado, colidido com outros arquivos, em proposições formais rigidamente estruturadas, sobretudo a partir de repetições. Na primeira parte, por exemplo, o plano sequência de dois minutos de um dos ataques é apresentado por curtos segmentos desmembrados de poucos fotogramas, mostrados sempre de forma repetida, duas, três ou quatro vezes cada um. Mais adiante, uma mesma imagem vista no início é retomada com outro acompanhamento sonoro e, em seguida, ela ainda é repetida em flashes entrecortados com outro registro. A repetição é um procedimento muito presente na filmografia de Carlos Adriano, bem como na história do cinema experimental. Desde "Balé Mecânico" (1924), de Léger e Murphy, passando por obras do cinema estrutural, até trabalhos mais recentes como os de Martin Arnold, encontramos diferentes formas pelas quais o cinema buscou desarticular e rearticular seu suposto fluxo linear através da repetição. Nossa hipótese é de que "Tekoha" busca, através principalmente da repetição, mas não só, elaborar um ritual de imagens e sons, uma dança ritualística do arquivo. O filme sugere-nos essa leitura quando, no início, insere uma epígrafe de Krenak relatando que alguns povos indígenas dançam para suspender o céu quando ele vem a pesar. Ao final, numa sequência apenas com o som (repetitivo) dos cantos-rezas Ñengary, a moldura-ritual se fecha. Não propomos que Carlos Adriano tente imitar rituais indígenas, mas sim que destaque uma possibilidade ritualística e decolonial do próprio cinema frente ao trauma; um contra-movimento, dado que esse meio foi criado e inicialmente desenvolvido em nações colonizadoras. Para Lévi-Strauss (2011), todo ritual se vale de fracionamento e repetição: os menores detalhes fazem diferença e, simultaneamente, repetem-se os mesmos enunciados ou gestos exageradamente. Não estamos longe de uma descrição da montagem de "Tekoha". Essa forma filme-ritual é profundamente crítica na sua desarticulação de uma experiência audiovisual focada na explicação, no conhecimento racional, esse saber-poder que funda o cinema como instrumento da colonização – donde os travelogues, os registros dos "exóticos", segundo o eurocentrismo. Em "Tekoha" a repetição não nos faz conhecer (e portanto possuir) mais; ela nos ataca, nos desarticula, nos faz perder, nos move (DIDI-HUBERMAN, 2010). "Tekoha" pode ser visto como parte de uma linha de cinema experimental que, diante de eventos que desafiam a representação, busca novas formas de construção temporal (SKOLLER, 2005). Ao amarrar uma noção ritual com certo cinema experimental de repetições, "Tekoha" desvia o meio cinematográfico de suas funções historicamente colonialistas, abrindo não uma "janela para o mundo", mas um portal por onde traumas e vivências transitam. |
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Bibliografia | DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010. |