ISBN: 978-65-86495-06-5
Título | Os engendramentos curativos das imagens agentivas de Michele Kaiowá |
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Autor | Olívia Érika Alves Resende |
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Resumo Expandido | Em 2021, durante o Seminário Temático “Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos” da Socine apresentei minha pesquisa que tematiza as vídeo-cartas de "Nhemongueta Kunhã Mbaraete" ¬ (Conversa entre mulheres guerreiras) – projeto desenvolvido durante a pandemia de covid-19 por Graciela Guarani, Michele Kaiowá, Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro. Na ocasião, destaquei aspectos gerais das produções que demandavam extrapolar teorias convencionais de representação para perceber o cinema enquanto operador de reconfigurações espaço-temporais e de contaminações afetivas entre ontologias. A reflexão sobre essa dinâmica criativa entre mulheres e imagens foi baseada no conceito de corpo, tal como concebido pelo perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro (2018) e em afinidades com o pensamento de Sandra Benites (2018). Para a presente edição do ST, busco adensar a reflexão com uma abordagem mais específica dessa potência relacional e transformacional do cinema, a partir das vídeo-cartas de Michele Kaiowá. Nas correspondências em vídeo, a cineasta expressa o desejo de filmar como um modo de “inventar o que fazer” durante a pandemia, uma vez que, segundo ela, a política de isolamento restringiu o trânsito dos parentes Kaiowá na Aldeia Panambizinho, localizada na região de Dourados (MS). Defendo que esse “desejo de invenção” orienta o gesto fílmico de Michele e ativa uma abertura proliferadora de implicações ontológicas, provocando uma reflexão sobre a potência agentiva das imagens da cineasta. A realização das filmagens fomenta e passa a integrar o preparo de receitas e rituais ancestrais, processos estes que são desenvolvidos a partir de relações diversas entre seres que integram o cotidiano da Aldeia. Em Conversas n.1, primeiro episódio de Nhemongueta, a câmera de Michele, ao participar do preparo da "chicha", se desloca pela plantação de milho e sugere uma série de interseções entre a pele feminina, a carne do milho e a película imagética. Em Conversas n. 2, o processamento da tintura "Uruku Jygue", feita a partir do urucum, ativa a transformação das sementes cujo vermelho-sangue se inscreve nos corpos, potencializa a reza e demarca a tela, interconectando subjetividades férteis, cheias de vida. As filmagens produzidas pela cineasta convidam a perceber a câmera como propulsora de “engendramentos”, ou seja, como abertura para deslocar fronteiras e compor com outros corpos. Segundo Bruno Latour (2021) o engendramento, processo fundamental para biodiversidade, é um artifício de invenção que se realiza a partir da bricolagem entre “holobiontes”, sendo estes agentes de contornos imprecisos e que não podem ser individualizados, já que vivem em relação de interdependência. Essa dinâmica de engendramentos afetivos é contida de uma potência feminina, não por uma suposta capacidade reprodutiva, mas justamente porque não se processa por semelhança e sim pela sensibilidade de fazer proliferar diferenças que, ao mesmo tempo, se acolhem, se espalham, se sobrepõem e se tornam outras. O gesto fílmico polinizador de engendramentos é percebido nas vídeo-cartas a partir da própria implicação da câmera com o território. As imagens, ao deslocarem coordenadas espaciais tradicionais, aparecem como membranas permeáveis a diferenças, criando uma tessitura de concatenações e parentescos não-genéticos, ainda que visualmente invisíveis na tela. O desejo de invenção de Michele desencadeia um exercício de reativação de temporalidades e espacialidades que compõem a Aldeia, um processo que Silvia Rivera Cusicanqui (2018, p.73) nomeia como “supervivência”, ou seja, uma forma criativa e curativa de praticar um viver orgânico e não-disciplinar, uma maneira de reinvenção de um corpo por se fazer: “ modo de pôr o corpo, fazê-lo em um entorno de comunidades de afetos, que talvez se irradiarão para fora e se conectarão com outras forças e iniciativas, longe da competência e das estratégias do ‘êxito’.” |
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Bibliografia | BENITES, Sandra. 2018. Viver na língua guarani Nhandewa (mulher falando). Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro. |