ISBN: 978-65-86495-06-5
Título | Memória incandescente: montar os arquivos em decomposição |
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Autor | Alexandre Kenichi Gouin |
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Resumo Expandido | A potente sensação de poder tocar as imagens que nos invade ao assistir os fotogramas em decomposição é uma manifestação da visão háptica. Segundo a pesquisadora Laura Marks, “na visão háptica, os próprios olhos funcionam como órgãos do tato” (Marks, 2002, p.3). O historiador da arte austríaco Alois Riegl, ao se debruçar sobre as diversas formas de percepção, enfatiza, na transição da arte egípcia antiga para a arte romana tardia, um lento declínio de características associadas à “tatilidade física” – associada à visão háptica – em contraponto com uma prevalência gradualmente crescente do espaço figurativo – associado, por sua vez, à visão ótica (Marks, 2002, p.4). Enquanto a visão ótica, na esteira da perspectiva renascentista, desenvolve com o espectador uma relação à distância, convidando-o a se projetar dentro de um espaço abstrato, a visão háptica por sua vez, ao engajar uma forma de olhar que deslize na superfície da imagem, apresenta assim uma forma de relacionamento possível entre o filme e o espectador que não passa pela figuração, pela identificação com uma figura humana. As marcas de decomposição nas imagens são elementos que perturbam o espaço ilusionista da percepção ótica, através do qual a realidade filmada é representada. Elas convocam uma visada háptica do espectador, trazendo seu olhar para a superfície da imagem, em vez de mergulhá-lo dentro dela. Trata-se de um tipo de olhar mais plástico, que tende a se mover na superfície da imagem, ao invés de focar numa determinada figura, buscando mais perceber texturas de que discernir figuras distintas. O que gostaríamos de pôr em relevo aqui, é que a visão háptica se desdobra como uma força cujo efeito se manifesta na percepção do tempo. As imagens alteradas, as deformações do material devido à decomposição de seus componentes, são outros tantos elementos que fazem surgir o próprio tempo e o colocam em movimento. Se, como nos lembra Roland Barthes, “o fundamento geométrico da representação” é que “as coisas sejam sempre vistas de algum lugar” (Barthes, 1978, p.180), as marcas de decomposição da película, ao perturbar o espaço da representação, parecem nos indagar de fato sobre o lugar de onde vemos essas imagens, só que esse lugar não é espacial, mas temporal, um lugar histórico. Sem mencionar o conceito de visão háptica, André Habib, ao comentar a experiência de assistir a fragmentos de filmes do início do século XX recentemente descobertos e apresentados em 2007 no Giornate del cinema muto de Pordenone, Itália, evoca “o estranho sentimento de tocar o tempo com o olhar” (Habib, 2011, p.32). Segundo o autor, essa “estética das ruínas” desperta no espectador a percepção de uma certa configuração de camadas temporais onde, além do tempo figurado, se manifesta também um tempo projetado. Diante do espetáculo da decomposição dos fotogramas: [...] o contemplador das ruínas está situado entre um tempo passado e um tempo por vir... entre duas ruínas, por assim dizer, testemunha privilegiada de um mundo onde tudo pereceu, e onde tudo perecerá: a ruína é a imagem da passagem (espacial e temporal), de um devir material, trágico e inelutável. (Habib, 2011, p.14) É possível destacar que os filmes de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi oferecem uma forma singular de pensar o trabalho e o peso do tempo, através de uma forma fílmica que desperta uma percepção do tempo múltipla e estratificada. Diante dessas imagens de um passado em decomposição, ao colocar a deterioração da película no primeiro plano, esses filmes nos proporcionam uma experiência temporal através da percepção háptica, onde os olhos funcionam como órgãos de toque, dando ao espectador a sensação de poder tocar o tempo. |
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Bibliografia | BARTHES, Roland. “Diderot, Brecht, Eisenstein”. In: D. NOGUEZ, org.. Cinéma. Théorie, Lectures. Paris: Klincksieck, 1978. pp.185-191. |