ISBN: 978-65-86495-06-5
Título | Argentina, 1985 e a constelação sígnica do Brasil pós-Bolsonaro |
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Autor | Bruno Fabri Carneiro Valadão |
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Resumo Expandido | Se na América Hispânica o surrealismo e o realismo fantástico se dão sobretudo em suas literaturas (e por vezes no cinema), por aqui basta ler um editorial de jornal de circulação nacional, ser vítima de um sistema financeiro predatório em mais alto grau, ou mesmo ler ou ver os anais do Congresso Nacional e do Senado para termos conta da desmedida de tudo: “transe is our business”. Esse surrealismo nosso de cada dia cria monstros: dentre tantos, podemos destacar a questão da anistia: aqui imposta num sentido deturpado. Se em outros países a anistia é um instrumento do direito penal que visa a retomada do Estado Democrático de Direito, como um dispositivo legal utilizado para fazer justiça, na medida do possível, contra práticas consideradas violentas num contexto de exceção, mas sem esquecer os crimes reais, não importando a sua procedência (inclusive crimes de Estado), por aqui ele serviu sobretudo para perdoar agentes estatais criminosos da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) – dentre eles torturadores – que viveram um imerecido anonimato. A dita Constituição Cidadã de 1988 não revogou tal anomalia: não foi atrás dos torturadores para aplicar-lhes o devido processo legal. Apesar do discurso contundente de Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte (“Temos ódio à Ditadura. Ódio e nojo”, GUIMARÃES, 1988), ficamos apenas nas franjas de uma verdadeira democracia. A Constituição de 1988 não “peitou” o passado, e não teve forças para revogar uma anistia criada pelos e para os militares. Não por acaso, nas eleições municipais do mesmo ano de 1988, um certo Jair Messias Bolsonaro, militar insubordinado que praticou terrorismo dentro da caserna, foi eleito vereador pela cidade do Rio de Janeiro pela primeira vez. Na Argentina foi diferente: a urgência em acertar as contas com o fascismo fardado que prendeu, sequestrou e matou milhares de pessoas, levou militares de alta patente para o tribunal por um conjunto de promotores públicos chefiados pelo procurador federal Julio César Strassera. Tais militares não reconheciam um tribunal civil como foro para julgar seus crimes – nada mais patético e ao mesmo tempo equivocado e aviltante à memória dos mortos por eles. A Ditadura Argentina havia se encerrado em 1983. Um ano depois, com um ambiente político favorável – com a tomada de uma certa distância histórica, combinada com as feridas ainda abertas – possibilitou-se aquilo que Walter Benjamin chama de “imagem dialética”: um flash histórico, um instantâneo fotográfico perfeito que plasma a marcha incessante da “razão histórica”. Como um “freio de emergência” ou um “aviso de incêndio”, a imagem dialética mobiliza forças que pausam o desenrolar histórico: somos convocados a olhar para trás e ver os signos do passado que – no agora imediato – apelam discretamente a nós, nos fazendo parar para vê-los (e ouvi-los) no sentido de reconfigurar inteiramente o presente. O filme Argentina, 1985 de Santiago Mitre (2022) é pedagógico neste sentido. Nos mostra um grupo de promotores que viram naquele instante a oportunidade, “quizá la última”, de acertar as contas com um passado tão cruel. O julgamento das mais altas patentes das forças armadas da Argentina foi a altiva delimitação e condenação da crueldade e da opressão estatal. Um grande passo civilizatório. O filme de Santiago Mitre surge no Brasil num momento muito interessante: a volta de Lula ao poder depois de quatro anos de horror fascista e ao som das palavras de ordem “sem anistia”, bradado pelo público que ouvia seu primeiro discurso como presidente, eleito pela terceira vez. Elencar os crimes cometidos por aquele candidato a vereador, militar reformado precocemente, eleito no ano em que se promulgou a Constituição de 1988 e que se elegeu presidente do Brasil exatos trinta anos depois (2018), é impossível aqui devido a extensão e a gravidade dos crimes. Mas algo salta aos olhos quando vemos Argentina, 1985: é hora de acertamos as nossas contas com o Brasil, 2023. |
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Bibliografia | BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a modernidade. (João Barrento, trad., org.) Belo Horizonte: Autêntica, 2015. |