ISBN: 978-65-86495-06-5
Título | Dar a ver o silêncio: o fragmento como estética da urgência |
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Autor | Mili Bursztyn de Oliveira Santos |
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Resumo Expandido | “Alguma Coisa Urgentemente” (1980), de João Gilberto Noll, se passa no Brasil na primeira década após o golpe de 1964. No conto, narrado em primeira pessoa, um jovem abandonado quando bebê pela mãe é brutalmente separado do pai na infância, depois que este é preso por atividades subversivas, em 1969. Ele sabe o que motivou a prisão do pai, mas entende que deve se calar: “Como lidar com uma criança que sabe?” (NOLL, 1980, p. 12). Um dia o pai surge irreconhecível: lhe falta um braço. Pouco resta do homem que gostava de passear com o filho e ensinar sobre árvores. Logo o jovem perceberá que a mutilação não é apenas física, mas emocional: o pai voltou em silêncio. O retorno do combatente faltando um pedaço é simbólico. Ao narrar a progressiva degradação física e moral de pai e filho, Noll aborda a violência e a crise moral daqueles tempos. Em “Experiência e pobreza”, Walter Benjamin (1985, p. 115) comenta a degeneração dos soldados regressos dos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial (1914-18): “mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos”. Para Benjamin, a Grande Guerra representou um divisor de águas. Em “O Narrador”, Benjamin (1985, p. 198) retoma a imagem dos “combatentes que voltam mudos do campo de batalha”, relacionando-a a morte do narrador, fenômeno social que ele associa ao desaparecimento gradual da “faculdade de intercambiar experiências”. No conto, Noll evidencia isto na transformação do pai, que remete a uma perda de mundo que tem suas origens no golpe de 1964 e se intensifica com o AI-5 de 1968. “Nunca Fomos Tão Felizes” (1984) é um filme livremente inspirado em “Alguma Coisa Urgentemente”. Dirigido por Murilo Salles, foi produzido no contexto de redemocratização e se passa em 1972, momento de recrudescimento da ditadura durante o governo do Gal. Médice. A escolha por ambientar o filme neste contexto histórico reflete o desejo do diretor de falar da experiência de sua geração, que testemunhou o golpe de 1964 na infância e cresceu sob o jugo do regime. Gabriel é um menino órfão de mãe criado por padres em um colégio interno. O pai, opositor político da ditadura, foi preso. Passados oito anos, Beto retorna para buscar o filho e viver com ele no Rio de Janeiro. Tão logo instala Gabriel em um apartamento com vista para o mar de Copacabana, Beto avisa que irá partir: “Seria muito arriscado para você eu ficar por perto. Mas eu vou estar sempre em contato com você. Isso aqui é só uma solução provisória”. Sem os meios necessários para compreender a condição de clandestinidade do pai, Gabriel irá experimentar seus sumiços como sucessivos abandonos e se ressentirá disto. A sensação de abandono liga o conto de Noll ao filme de Salles. Em declaração sobre o filme, Noll (1984, p. 2) aponta a sensação de abandono como o “nervo comum” entre as obras, “a herança histórica daquele filho da classe média brasileira mais esclarecida, lá pelos anos 70, sem instrumentos para captar o sentido da interditada ação paterna”. Salles (1988, p. 8), por sua vez, reconhece em Noll “um cara que escreve do jeito que eu penso as imagens”. O abandono tal como tematizado por Noll e Salles só se dá a ver como silêncio. Já dizia Manoel de Barros (2013, p. 9): "Difícil fotografar o silêncio". Noll e Salles o fazem por meio de uma estética do fragmento. No conto, ao lançar mão da narrativa em primeira pessoa, fragmentada, Noll reproduz o senso de urgência característico dos testemunhos. Em É Isto Um Homem?, Primo Levi (1997, p. 07-08) defende o caráter fragmentário do livro como expressão da urgência de seu testemunho sobre a experiência de Auschwitz: “seus capítulos foram escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência”. A partir de Levi, Renato Lessa (2008, p. 16) define uma estética do fragmento como um estilo que “permite que o narrador mostre, mais do que explique”. Não seria justamente esta a função da fotografia no filme de Salles? Mostrar o abandono de Gabriel na angústia de seus gestos, mais que explicá-lo. |
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Bibliografia | BARROS, MANOEL. Ensaios Fotográficos. São Paulo: LeYa, 2013. |