ISBN: 978-65-86495-06-5
Título | A biblioteca audiovisual compartilhada de Nanni Moretti |
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Autor | Juliana Rodrigues Pereira |
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Resumo Expandido | Ao longo de sua filmografia, o diretor italiano Nanni Moretti tem se colocado como um comentador privilegiado do cinema. Isso tem sido exposto por meio da reflexividade, ou seja, a capacidade de o filme trazer questionamentos sobre sua própria produção, autoria, procedimentos textuais, influências intelectuais e recepção (STAM, 2003, p. 174-175), que pode ser vista nas abundantes e reiteradas referências diretas a outros filmes, atores e realizadores; ao processo do fazer cinematográfico e ao gesto do espectador. Desta forma, Moretti aponta para seus próprios filmes enquanto construção e como parte de um sistema maior. Para usar a metáfora de Robert Stam, é “como se tanto o cineasta como os espectadores fossem membros de uma vasta biblioteca audiovisual” (STAM, 1985, p. 21). Nesta comunicação, vamos nos deter sobre o longa-metragem “Caro diário” (1993) e analisar as três estratégias de reflexividade presentes: 1) as citações ao cinema – que podem tanto ser diretas, quando trechos de outros filmes ou obras audiovisuais são mostrados, ou indiretas, quando apenas são citados outros filmes e obras audiovisuais ou personalidades do cinema; 2) as referências à atividade prática enquanto autor e diretor de cinema; e 3) a reverberação de outras obras na forma do filme. No primeiro tipo, temos as idas de Moretti ao cinema, que não se furta de comentar e se indignar com o que vê na tela; o encontro com Jennifer Beals pelas ruas de Roma; ou as menções a grandes nomes do cinema italiano, como Vittorio Storaro ou Ennio Morricone. A segunda forma de reflexividade fílmica presente é a que associa Nanni Moretti a seu papel de realizador, evidenciando etapas da produção fílmica. É o caso de quando ele fala que gosta de ver o interior de casas e que justifica essa visita para os donos dos imóveis como uma busca por locações para um futuro filme – esse filme hipotético, um musical sobre um confeiteiro trotskista, é materializado na última sequência de seu próximo filme, Aprile (1998). Outro exemplo é o uso de imagens da última sessão de quimioterapia de Moretti, filmadas por ele próprio. Finalmente, a terceira forma de reflexividade aparece na forma de uma homenagem. Um longo plano-sequência acompanha Moretti pilotando sua Vespa por toda a extensão da praia onde Pier Paolo Pasolini foi assassinado em 1975. Até que ele para e desce da moto. Há um corte para imagem do monumento em homenagem a Pasolini, visto através de uma cerca. Trata-se de um plano subjetivo. A câmera, porém, tem o poder de transpor esse obstáculo: conforme o zoom nos aproxima do monumento, a barreira vai desaparecendo. Um contraplano mostra o outro lado do monumento, deteriorado pelo tempo, assim como todo o entorno. Como bem apontado por Mariarosaria Fabris (2008, p. 98-99), Moretti “demonstrava ter compreendido o ensaio ‘Cinema de poesia’(1965), em que Pasolini afirma que a vida se reproduz no plano-sequência, cujo significado é dado pelo corte que interrompe o fluxo contínuo de imagens”. Didi-Huberman, ao relacionar o “Livro das passagens” de Benjamin com o Atlas Mnémosyne de Aby Warburg chama a atenção para a memória como montagem. “Porque não é orientada, a montagem simplesmente escapa às teleologias, torna visíveis as sobrevivências, os anacronismos, os reencontros com as temporalidades contraditória que afetam cada objeto, cada acontecimento, cada pessoa, cada gesto” (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 40). Leopoldo Weizbort também evoca a biblioteca para falar sobre Warburg. “Pois a constituição de imagens faz-se sempre em um diálogo de imagens: imagens deixam-se reportar a outras imagens” (WEIZBORT in WARBURG, 2015, p. 17). A força do cinema de Moretti está justamente nesse diálogo que estabelece com outros filmes, em montagem. Ao evocar o cinema, a biblioteca audiovisual compartilhada, Moretti transforma seus próprios filmes em espaços de memória. Quando mais ele está entre outros filmes, mais clara fica a sua singularidade. |
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Bibliografia | BETELLA, Gabriela Kvacek. “Memória experimental ou diário de poucas palavras de Nanni Moretti: a autobiografia do homem mascarado no Instagram”. Texto Digital, Florianópolis, v. 16, n. 2, p. 223-239, 2020. |