ISBN: 978-65-86495-06-5
Título | “A terra é circular” – Cosmologias afro-atlânticas em Ôrí |
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Autor | Gustavo Mota Alves Assunção Nogueira (Gustavo Maan) |
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Resumo Expandido | Ôrí é um filme documentário de 1989, dirigido por Raquel Gerber e guiado pela fala da pensadora Maria Beatriz Nascimento. A obra procura trabalhar a presença afro-brasileira em suas diversas reverberações: nos corpos, nos espaços e na história. Com as gravações feitas entre 1977 e 1988, o filme atua lado a lado ao movimento negro da época, registrando diversos momentos relevantes das mobilizações políticas referentes a problemática racial brasileira. Nesta apresentação pretendemos entender o pensamento elaborado pelo filme acerca das religiões afro-brasileiras, investigando a inserção de tais liturgias e cosmologias afro-atlânticas em um discurso estético, ético e político mais amplo. O filme em questão se constitui a partir do trânsito livre entre diversos territórios (escolas de samba, terreiros, bailes blacks entre outras), criando um percurso que foca e expande as experiências da cultura negra brasileira. As cenas desses territórios eleitos como representantes de um etos cultural são dispostas de maneira alternada ao longo de toda a obra, forjando um modelo relacional em que coisas, espaços e pessoas pensam entre si. Nesse sentido é importante que compreendamos que o documentário não almeja uma descrição detida e individualizada de cada um desses territórios/espaços/instituições. O que parece realmente importar é uma tentativa de estabelecer a diáspora negra no Brasil como um sistema de relações que é composto por essas múltiplas vivências. Dessa forma, em Ôrí, as religiosidades afro-brasileiras não são necessariamente o ponto de partida ou chegada, mas sim um componente de uma trama mais ampla, costurada entre giras, sambas, manifestações políticas e congressos. Beatriz indica em sua narração que a violência primeira incidida sobre o negro escravizado foi a perda de sua própria imagem, decorrente das diversas tecnologias de sujeição dos corpos com o fim de eliminação das facetas de suas identidades. O filme propõe, no sentido oposto, a defesa da vida que reside na imagem dialética — uma imagem que não "captura" a experiência, mas que dá continuidade a seu movimento multidirecional. É por isso que em Ôrí um espaço ou uma pessoa nunca é definido por essência, mas sempre em relação àqueles que a cercam. A convicção do filme na destruição do sistema colonial implica em uma segunda ação concomitante que seria a edificação de uma nova identidade, a recuperação da “imagem perdida” no processo escravocrata. Essa retomada, para o documentário, só pode ser feita a partir do elo entre o coletivo — que compartilhou a experiência de perda — e o individual, que busca se entender junto aos outros. A operação de produção de uma continuidade, como veremos, é aplicada no filme tanto na relação entre individual e coletivo, como também para as dimensões do tempo e do espaço. Um lugar carrega consigo muitos outros lugares, assim como o corpo em transe carrega na carne a expressão de múltiplos corpos e tempos. É a imagem do círculo, forma primária da gira, que acaba por condensar a ideia de ciclo presente nesse tipo de pensamento. Nele, não é possível distinguir um caminho único de começo e fim, sendo o percurso por todos os seus pontos um eterno refazer-se. Circularidade e continuidade se encontram no filme quando percebemos uma insistência na conexão entre o individual e o coletivo ou entre o presente, o passado e o futuro. Essa mobilidade é muito bem definida por Beatriz no ato de se nomear, e por consequência localizar também todo o filme, como “Atlântica. Procuraremos apresentar a forma com que o filme transpõe para a linguagem cinematográfica a metodologia atlântica proposta por Beatriz, investigando de que maneira o documentário absorve elementos da liturgia em sua construção estética. Pretendemos com isso entender quais são as consequências da aproximação do cinema e suas tecnologias a uma epistemologia pautada pelo conhecimento religioso afro-brasileiro. |
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Bibliografia | ADORNO, T. W. O ensaio como forma. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. p. 15-45. |