ISBN: 978-65-86495-09-6
Título | A voz atravessa a palavra: as vozes nômades de Bom Trabalho |
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Autor | Mariana Vieira Gregorio |
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Resumo Expandido | Minha pesquisa de mestrado parte da análise de Bom Trabalho (Claire Denis, 1999) e Drive my Car (Ryûsuke Hamaguchi, 2021) para discutir a voz e a palavra no cinema. Pretendo aqui focar em Bom Trabalho, que é inspirado em Billy Budd de Herman Melville e que usa trechos da ópera de Benjamin Britten, adaptada da novela. O filme, uma adaptação que não tenta ser fiel, é sobre a culpa e o desejo homossexual inaudito de Galoup quando era oficial da Legião Estrangeira Francesa em Djibouti, em África. Através das confluências entre literatura e cinema, novela e ópera, palavra e voz, desejo e pós-colonialidade embrenham-se no filme de Denis. Mas é a voz que norteia minha pesquisa. O medievalista Paul Zumthor pesquisa a passagem – ou ruptura? – da poesia oral para a literatura escrita na Europa. A historiografia do cinema também tem a sua cisão, a sua própria queda do paraíso, como diz Chion (2004): a passagem do cinema mudo para o falado. Em comum, ambas historiografias se revolvem em torno dessa queda que gera uma mudança irrefreável em suas linguagens. Porém, com uma diferença crucial: enquanto a literatura tornou-se muda, o cinema povoou-se de vozes. Além disso, o “paraíso” das imagens mudas do cinema durou apenas trinta anos. No entanto, foi tempo o suficiente para as conhecidas reações contrárias ao cinema falado, como se voz fosse antítese de cinema. Essa resistência explica-se, em parte, pela quantidade numerosa de adaptações literárias que foram produzidas, junto com um temor da teatralização do cinema. É a partir dessas críticas que André Bazin (1952) vai escrever o artigo Pela defesa do cinema impuro, e que, hoje, é referencial dentro dos estudos de intermidialidade no cinema – e ressaltam a confluência do cinema com as outras mídias ao invés de buscar sua especificidade. Nesse ponto, voz e intermidialidade se cruzam. A voz, para Zumthor (2018, p. 78), “se situa entre o corpo e a palavra” e, para a filósofa italiana Cavarero (p. 28, 2011), “excede” a palavra. Impura, a voz contamina-se pelo timbre e entonação, pela reverberação no espaço, pela mistura com outras vozes e ruídos. Porém, na captação de som direto e no tratamento de voz na pós-produção, convencionou-se isolá-la dos outros sons, deixando-a clara e inteligível, e até dar destaque à sincronicidade voz-imagem. Chion (2004) justifica esse verbocentrismo do cinema por conta da forma como a escuta humana opera, privilegiando a linguagem. A voz, então, soa como algo óbvio – ela diz até demais – e, talvez por isso, é pouco estudada no cinema. Em Bom Trabalho, a voz semi-acusmática, uma “voz-eu” (Chion, 2004), de Galoup, vaga pela superfície da imagem. Ela não tem o poder de interferir no passado. É ambígua, lacunar, poética. Sua sonoridade diferencia-se tanto dos diálogos quanto dos sons vocais ofegantes dos legionários que se exercitam no deserto. Essas vozes de exaustão e esforço, em conjunção com as imagens e os cortes, imprimem sensorialidade, ritmo e erotismo nas cenas – como uma escuta “háptica” (Marks, 2007) em que o filme parece transpirar e se exceder junto àqueles corpos. A voz de Galoup, solitária, soa como um contraponto diante das vozes coletivas ou “coralidades” (Connor, 2015) do filme. Na cena inicial do trem e da final no deserto, o vozerio (walla) dos africanos é incompreensível no que tange à linguagem, mas seu tom, volume, polifonia e massa sonora ocupam o espaço geográfico que lhes é devido. Os cantos dos hinos legionários e os coros da ópera, por outro lado, são harmônicos, organizados. Os hinos legionários transmitem a ideologia militar da Legião Francesa que, apesar de aceitar homens de qualquer país, obriga-os a tornarem-se um só corpo. O trecho coral da ópera repete, enquanto os legionários suam no deserto, Oh Heave!, que pode ser traduzido tanto como suspirar quanto hastear. O coro de transpiração dos marinheiros de Billy Budd torna-se o coro dos legionários, a voz sufocada de quem não tem voz. Sem lar, pátria ou combate. |
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Bibliografia | BBATE, C. e PARKER, R. Uma História da Ópera. Companhia das Letras: São Paulo, 2012. |