ISBN: 978-65-86495-09-6
Título | Redenção:experimentar para lembrar, se opor e resistir ao colonialismo |
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Autor | Denise Costa Lopes |
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Resumo Expandido | Em 1911, o quadro Redenção de Cã (1895), de Modesto Brocos, viajou do Brasil para Londres para ser exibido no I Congresso Universal das Raças. Motivo? Exemplificar o ideal de branqueamento da população em voga no Brasil entre 1850 e 1945. Em novembro, 112 anos depois, o mesmo quadro foi virtualmente queimado na videoinstalação Redenção, de Mariana Luiza, no IDFA (Festival Internacional de Documentários de Amsterdam), como uma potente reposta ao racismo, ao colonialismo e a todas as formas de apagamento de nossas raízes civilizatórias afro-indígenas que ainda hoje nos devastam. O trabalho expandido de Mariana propõe uma experiência audiovisual experimental a partir de elementos pictóricos e fílmicos dissociados de seus habitats naturais. Articula assim um conjunto de relações plásticas transversais, envolvendo pintura, fotografia, desenho, escultura, indumentárias, colagens de textos e de falas sonoras, e a arquitetura local de exibição, promovendo deslocamentos temporais e espaciais e a imersão de um participador envolvido corporalmente no processo de ‘leitura’ e ‘montagem’ das imagens e sons. A obra é dividida em três atos labirínticos. No primeiro, Redenção de Cã, a pintura é projetada e decupada por meio de enquadramentos alternados que explicitam a dinâmica de conexões das linhas imaginárias da composição. Seguidas pela câmera, elas nos deixam ‘constatar’ o embranquecimento geracional, da avó preta e da mãe mestiça até o bebê branco, filho de um pai ibérico. No segundo, Um século, três gerações, o movimento eugenista ganha forma com a partilha de inúmeras imagens de arquivo em atravessamentos. Concursos de beleza eugênicos nos anos 1940-50, arquivos sonoros de rádio defendendo a superioridade branca, fotografias de imigrantes recém-chegados ao país para ‘embranquecer a nação’, artigos de jornais e propagandas eugênicas conclamando a imigração europeia, trechos de autores que flertaram com o tema da eugenia no Brasil, e da Constituição de 1934, que incentivava a educação racista, fazem parte da projeção, que forma um pequeno documentário assustador sobre o tema. Por último, N'kama mia ntangu (Instâncias do tempo), projeta um filme experimental curto numa superfície rasa de água no chão, evocando nossas ancestralidades e a força da cosmologia de raiz africana a partir de imagens oníricas e desconstruídas da natureza, dos bichos, de afrodescendentes e de rituais da cultura bantu-kongo. O mito de Narciso, base de ideologias que não consideram o outro, é questionado pelo dispositivo, apontando para a recusa do antropocentrismo e a necessidade de nos reconectarmos com a natureza em pé de igualdade. O espectador, que precisa se debruçar sobre as imagens para assisti-las e que pode interagir com elas mexendo na água e alterando suas feições, acaba projetado como reflexo em meio às imagens que ondulam, cintilam e se espelham também no teto da sala escura, duplicando e potencializando a experiência, que se engendra da complexidade do real, como no fundo de um espelho (Michaud). Encarar o outro plasmado no reflexo do seu próprio rosto e, ao contrário de Narciso, procurar empatia com esse diferente tangível, que presentifica mundos passados (Gumbrecht), a fim de construirmos alteridades capazes de se oporem ao etnocentrismo, parece ser o desejo de Redenção. Ao analisar o quadro de Brocos, o historiador Rafael Cardoso atenta para o fato de que “nem sempre uma obra engajada politicamente é inovadora em termos de linguagem, e vice-versa” (p.107). Mas Redenção não é só politicamente correta e importante para os dias de hoje, ela problematiza o estatuto da imagem em movimento e entrelaça recursos de linguagem que criam uma atmosfera de envolvimento sensorial capaz de beneficiar o engajamento daqueles que a percorrem, tornando-os por efeito coautores da obra e incendiários do quadro de 1895, ‘donos’ do discurso que ali se encerra. Racismo, eugenia e colonialismo parecem assim de alguma forma redimidos pelo experimentalismo que a obra opera. |
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Bibliografia | Cardoso, R. A arte brasileira em 25 quadros: 1790-1930. Rio de Janeiro: Record, 2008 |